Por  Ramu Damodaran

O escritor é Diretor-Chefe do Impacto Acadêmico das Nações Unidas (UNAI, United Nations Academic Impact), sediado no Departamento de Comunicações Globais. Este editorial apareceu pela primeira vez no #WhyWeCare, @ImpactUN, em 5 de fevereiro.

“Nostalgia pelo presente” é uma frase que uma vez ouvi (ou acho que ouvi), e que me veio à mente ao ler uma resposta recebida sobre a coluna da semana passada (29 de janeiro) e sua retrospectiva sobre o quarto de século de trabalho com afirmações e cuidados diligentes do CTAUN (Committee on Teaching About the UN, Comitê de Ensino sobre a ONU). A pergunta feita foi direta; o CTAUN tinha sido capaz de “reunir-se” durante o ano passado? A resposta, que eu deixei de perceber em meio à minha nostalgia pelo passado, é sim… três vezes, na verdade.

A primeira reunião aconteceu presencialmente nas Nações Unidas, em sua conferência anual com o tema “War No More” (Não Mais Guerra), em 28 de fevereiro, uma conferência pela web coreografada por Elisabeth Shuman, sobre alfabetização midiática, em 8 de dezembro, e, depois, uma comissariada por Mary Metzger, sobre as Nações Unidas e os Povos Indígenas, em 24 de janeiro, Dia Internacional da Educação.

Entre a brilhante constelação de participantes, Mary trouxe para o evento Wilton Littlechild, o advogado e humanista dos povos indígenas Cri que serviu no Canadá como Grande Chefe da Confederação das Seis Primeiras Nações do Tratado, (Treaty 6), membro do parlamento, e da Comissão de Verdade e Reconciliação do país.

Nesse último contexto, ele falou sobre a busca da reconciliação “a partir de dois pontos de partida diferentes. Um deles é de uma perspectiva cultural. Na minha língua, em Cri, quando se diz ´reconciliação´, dizemos ´miyowahkotowin´, e significa ´ter boas relações´. É o que a reconciliação é, a meu ver, e eu tenho um apoio cultural para isso em nossas cerimônias, onde temos o protocolo que chamamos ´waypinasun´, que pode significar ´deixar ir´, quando é oferecido com esse espírito. Seja para deixar de lado uma má experiência para encontrar um lugar onde você possa perdoar ou, uma vez que você tenha deixado de lado essa experiência, recuperar seu próprio eu, sua força como indivíduo para que você possa começar a voltar ao equilíbrio com o qual você foi abençoado pela primeira vez”.

Essa recuperação do “eu” e da identidade é central para a individualidade na qual se baseia a Carta das Nações Unidas (sua referência à “dignidade e ao valor da pessoa humana” e não “das pessoas humanas”, em particular).

Como esta coluna relembrou alguns meses atrás, foi apenas recentemente, em 2007, que a ONU adotou sua Declaração sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Nessa declaração, estava implicitamente centrada o que um artigo acadêmico da Organização Internacional do Trabalho descreveu, dois anos antes, como o “direito de ser diferente”.

Esse era um direito cuja horrível extinção se manifestou no Holocausto, cuja lembrança e comemoração observamos na semana passada. Como o Professor Xu Xin, que é Professor e Diretor do Centro de Estudos Judaicos da Universidade de Nanjing (República Popular da China) escreveu, “o que Hitler fez é considerado como um crime contra a humanidade. Isto levanta uma série de questões relativas à humanidade.

Por exemplo, como poderia um grupo de seres humanos (os nazistas) fazer coisas tão terríveis a outro grupo (os judeus)? Por que o resto do mundo ficou parado em silêncio enquanto o Holocausto acontecia? O que é a natureza humana? O que aconteceu com o sentido dos direitos humanos durante a Segunda Guerra Mundial”?

As observações do Dr. Xu estão incluídas em sua contribuição à primeira de uma série de artigos de discussão publicada pelo Holocausto e pelo Programa de Extensão das Nações Unidas, estabelecido pela Assembleia Geral em 2005, que seu chefe fundador, Kimberly Mann, desenvolveu em uma “lembrança e mais além”, uma que o rabino Arthur Schneier, que é rabino sênior na Sinagoga Park East de Nova York, e o fundador e presidente da Fundação Apelo da Consciência, em um artigo no UN Chronicle (Crônicas ONU), descreveu como tendo “despertado as pessoas em todo o mundo para a capacidade da humanidade de fazer o mal – mas também para nossa capacidade de tomar medidas para reparar nosso mundo… um programa permanente e potente de educação que vai além da celebração de memórias”; serviria como um antídoto para acabar com a negação do Holocausto, uma vacina para evitar que o vírus do antissemitismo e do racismo assolasse futuras vítimas”.

Esses atributos são, em muitos sentidos, as pedras basilares das Nações Unidas; como António Guterres escreveu em seu prefácio à Estratégia e Plano de Ação das Nações Unidas sobre Discurso de Ódio, temos “uma longa história de mobilização do mundo contra o ódio de todos os tipos, através de ações abrangentes para defender os direitos humanos e fazer avançar o Estado de Direito. De fato, a própria identidade e o estabelecimento da Organização estão enraizados no pesadelo que se segue quando o ódio virulento é deixado sem oposição por muito tempo”.

Lendo as palavras do Secretário-Geral, minha mente voltou a um ensaio sobre o fascismo do falecido Professor David Ingersoll, Professor Emérito da Universidade de Delaware (onde o Presidente dos EUA Joe Biden foi um de seus alunos). Na composição, ele argumenta que “talvez mais fundamentalmente – em especial a partir da perspectiva da modernidade liberal – o fascismo não acredita que o ser humano esteja expressando seu potencial mais valioso e vívido quando usa sua capacidade de raciocinar para fins de esclarecimento humano em nível individual e coletivo. O fascismo é hostil à razão e à reflexão ´intelectual´. Esta é uma das principais razões pelas quais o fascismo está associado à ação e não às ideias”.

O Programa de Extensão das Nações Unidas sobre o Holocausto procurou criar sobre o poder das ideias que o fascismo reprimiu, e que as Nações Unidas e a educação sobre o Holocausto procuraram estimular para criar o poder da ação. Falando em um evento nas Nações Unidas há cinco anos, como parte do programa, a Professora Zehavit Gross, que no momento era a Presidente da Cátedra da UNESCO de Educação para Valores Humanos, Tolerância e Paz, da Escola de Educação da Universidade de Bar-Ilan, em Israel, observou que tivemos “a honra de viver em um dos períodos mais esplêndidos da história humana. Vivemos em um mundo de tecnologia avançada, de conhecimento e riqueza material e a questão é: o que estamos fazendo com esses recursos? Será que aprendemos a viver em paz uns com os outros? Será que aprendemos a respeitar a diferença e os direitos humanos dos outros? Se olharmos para o mundo de hoje, podemos ver enormes desafios. Com toda nossa tecnologia, ainda não aprendemos a superar o mal. No entanto, é nossa responsabilidade trabalhar por um mundo melhor. E o Holocausto deve, através da educação, tornar-se uma ferramenta poderosa contra o racismo, ajudando a nos educar para um futuro melhor, mais justo e cosmopolita, em prol do benefício de toda a humanidade”.

O período de 2020 foi marcado por dois eventos que manifestaram a ideia da “memória e mais além”, no Rio de Janeiro, Brasil. Há um ano, a cidade foi sede de uma exposição criada em parceria com o Museu do Memorial do Holocausto dos Estados Unidos “Alguns eram vizinhos: escolha, comportamento humano e o Holocausto”, que refletiu sobre o que as pessoas fizeram – ou não fizeram – durante a Segunda Guerra Mundial, de forma a ajudar as vítimas – ou não, contribuindo, dessa maneira, para a ascensão do antissemitismo e do nazismo.

E, no dia 14 de dezembro, o Rio inaugurou um memorial do Holocausto, retratado acima, que inclui uma torre de mais de 20 metros de altura com vista para o Pão de Açúcar, na foz da Baía de Guanabara, cujo nome tem origem indígena na língua tupi, goanã-pará, de gwa “baía” com nã “semelhante” e ba’ra “mar”, permitindo sua pronta tradução para “o seio do mar”.

Essa imagem nos lembra do apelo do Secretário Geral Guterres, em 3 de fevereiro. Em sua mensagem para o lançamento da iniciativa da ONU Década da Ciência Oceânica para o Desenvolvimento Sustentável, em favor do “conhecimento – uma revolução da ciência dos oceanos… restaurando a capacidade dos oceanos de nutrir a humanidade”.

O oceano, nessa frase sobre a maré, poderia muito bem ser uma metáfora para a educação, a revolução vista dentro dele por meio da inovação e exploração, como aquela relacionada às ações contra o Holocausto, e a educação como um meio de “nutrir a humanidade” dentro de seu seio, um seio tão acolhedor e seguro quanto o do mar, uma educação que respeita a lição, não, o alerta da história, como António Guterres expressou em seu discurso ao Bundestag alemão, em dezembro, onde ele diz que “que toda política movida pela raiva, distorção e bodes expiatórios constitui sempre – sempre – uma receita para o desastre”.

Uma reflexão sobre o que o legendário professor e acadêmico Yehuda Bauer, Conselheiro Acadêmico do Yad Vashem – The World Holocaust Remembrance Center , a autoridade na memória dos mártires e heróis do Holocausto em Israel − escreveu na primeira revista de artigos de discussão, que “políticas que não se baseiam em fundamentos morais não são, no final das contas, políticas práticas”.

O próprio Dr. Bauer havia se dirigido ao Bundestag há vinte anos, onde disse: “Eu venho de um povo que deu os Dez Mandamentos ao mundo. Concordemos que precisamos de mais três mandamentos, que são: não serás um agressor; não serás uma vítima; e nunca, mas nunca, serás um espectador”.

Essas palavras ecoaram em minha mente quando li o artigo do rabino Schneier, no Chronicle, citado anteriormente, e sua alusão a “uma antiga melodia de um musical chamada “You’ve got to be taught” (em tradução livre: você tem que ser ensinado). E o que devemos ensinar é respeito, civilidade, os valores fundamentais de justiça e liberdade − em suma, “amar o próximo como a si mesmo”.

Lendo essas linhas que nos fazem pensar, e desejando que as circunstâncias nos permitissem ouvi-las na própria voz poderosa e gentil do rabino Schneier, pensei em outra melodia, uma canção de esperança triunfante, de aprendizagem, que pode ser, assim como o arrependimento, algo vitalício.

Ensine bem seus filhos

O infortúnio de seus pais passou lentamente

Alimente-os com seus sonhos

O sonho escolhido por eles será aquele pelo qual você será lembrado

Você na flor da idade

Desconhece os medos e preocupações

Que seus antepassados tiveram em seus corações

Então, por favor, ajude seus filhos

Com essa sua juventude ainda em brilho

Eles buscam a verdade

Antes de partirem para a eternidade


 

Traduzido do inglês por Adriana Ferreira Heery / Revisado por Graça Pinheiro

O artigo original pode ser visto aquí