CRÔNICA
Por Marco Dacosta
Diz uma lenda dos índios Adirondack que ao nascer recebemos o dom de ter um amor pra toda a vida. Esse amor é único e voa como uma borboleta, pousando em diferentes flores. Por isso – dizem – a nossa capacidade de durante a vida nos apaixonamos por diferentes pessoas, em diferentes épocas. Na verdade, segundo eles é o mesmo sentimento, que apenas se transfere, voa e pousa em outro lugar. Só amamos uma vez – o resto é apenas esse amor flutuando, se alojando em outros corpos. Por isso deixamos de amar, como se soubéssemos que naquela pessoa já não reside essa força que nos unia. E assim vamos sonhando com o mesmo sentimento. E tentamos, e tentamos. Alguns morrem sem achar para onde ele foi.
Foi próximo às montanhas Adirondacks, onde viviam esses índios, ao norte de Nova Iorque, que ouvi pela primeira vez essa lenda – e sorri imaginando que isso explicava muita coisa. Quem não teve sonhos com antigos amores ?
Foi assim que encontrei Miss Janis, naquele verão. Vou explicar.
Aos sábados é comum que existam festejos nas ruas de Woodstock, Bethel, Kingston e outras cidades ao sul das montanhas Adirondack. Há quiosques, crianças correndo, plantas e arranjos florais que perfumam o ar. São pequenas cidades, com poucas ruas, cercadas de sítios e fazendas produtoras de laticínios. Fonte inesgotável de água pura, queijos e manteigas orgânicas.
Alguns produtores, durante a semana, fazem trajetos de até três horas,levando seus produtos para a feira da Union Square. Há pães escuros, cogumelos de todos tamanhos, artesanato de madeira e flores.
As feiras de Kingston me lembram as barraquinhas que vi em Aix-en-Provence, no sul da França. Há sabonetes, colônias e gravetos com cheiro de Alfazema, um perfume e talco da minha infância. Tudo está associado com essa região ao norte da cidade. Quando o verão chega, fugimos para as montanhas e florestas do Hudson e para além, em direção às montanhas de Catskill.
Há um cheiro de passado no ar, casas coloniais, respiramos a Nova Inglaterra. Nas ruas, crianças brincam ao redor de feixes de lavanda, puxam os braços das avós, cheias de cordões de couro, camisas coloridas e flores no cabelo.
Parece que estava na “Era dos festivais”, do “verão do amor” com meninas usando saias de tie dye. Ainda há carros conversíveis pintados de rosa e toca discos com vinil, nas lojas.
Foi num dia desses de agosto que me aproximei desse cenário. Cheguei na cidade bem cedo e queria caminhar pelo centro histórico. Desfilei meus olhos nos musicais de um café, com fotos preto e branco do festival de Woodstock, que aconteceu ali na vizinhança, em Bethel. Fui até a praça, vi a igreja e seu jardim cheio de lápides, percorri calçadas de tijolo vermelho e achei uma sombra para finalmente comer meu sanduíche de carne de porco e abacaxi.
Quando olhei para o lado um vira-latas marrom estava me observando.
George, volte aqui – gritou uma senhorinha ao longe, se aproximando para buscar o cão fujão.
Ela trazia um buquê de flores, uma sacola. Seu pescoço tinha dezenas de cordões, pedras e seus olhos estavam cobertos por óculos brancos de lentes laranja. Parecia que havia saído de um filme dos anos 60.
Esse cachorrinho me deixa louca.
George? Era o nome do cachorrinho de Janis Joplin. Disse sorrindo. Imaginei que pela roupa e o jeito de hippie ela pudesse entender o que eu dizia.
Esse é George VIII, mas não é o Rei. Eu sempre coloco o mesmo nome e eles vão morrendo e vou batizando novamente de George. Acho que deve ser o oitavo.
Sim – brinquei. E a senhora é Janis Joplin.
Miss Janis. Vai querer o perfume ? Tenho chocolates com lavanda – sou eu mesma que faço. – me disse com um sorriso.
Eu estava brincando, mas a semelhança com a cantora, morta por overdose em heroína em 1970 – era imensa. Eu ainda engatinhava quando o festival de woodstock, ali perto, fervilhava. A primeira mulher ídolo do rock deixou um vasto registro de imagens. Tinha um sorriso luminoso.
Desconversei sobre a compra.
A senhora vai me dizer que é Janis Joplin? E aí os arranjos de flores vão ficar mais caros – ironizei.
A senhora vendedora de Alfazema sorria a cada provocação minha. Seus óculos enormes, alaranjados, deixavam à mostra as marcas da idade. Não – pensei. Eu devo estar empolgado com o lugar. Janis morreu. Eu não a vi, mas os jornais disseram que ela só tinha 27 anos quando nos deixou. Sua voz um pouco rouca e seu jeito rebelde inspiraram gerações.
Foi sob meu olhar inquisidor que a senhora sentou-se ao meu lado, afagou o pequeno George e me contou sobre a lenda dos índios Adirondacks. Do nada. Me olhou e saiu falando de amor e solidão.
Não entendi porque falar de amor se eu só queria saber qual a relação dela com a outra Janis. Parecia conversa de bebado. Eu perguntava uma coisa e ela só respondia lendas e trechos de músicas.
Pedaço do meu coração. “Take another little piece of my heart now, baby” cantarolou com uma voz rouca de fumo.
Sim, conheço a música.
Pedaço do meu coração é isso. A gente ama uma vez, o resto são pedaços do mesmo coração que vagam por aí e a gente vai substituindo um por outro – mas ele é o mesmo, é feito do mesmo material.
Os índios são sábios. Pensei.
Mas não havia entendido ainda porque aquela mensagem, o que significava uma lenda se ela não me conhecia. Pode explicar ? O que eu tenho a ver com amor perdido ? A senhora seria uma cigana hippie ? – brinquei.
“Quando a gente fala de amor, de coisas que afetam todo mundo, não precisamos nos conhecer”, disse. Todo conselho – segundo ela, serviria para as almas que vagam pelo mundo. Ela conseguiu ler minha solidão e que com certeza, pelo brilho de meus olhos, ainda buscava por felicidade ao lado de alguém.
Miss Janis parecia sofrer de Alzheimer – ia e voltava nas histórias, repetia trechos. Às vezes falava com precisão e datas. Me disse que se mudou para Kingston na época do festival e nunca mais voltou da Califórnia, onde tinha no verão anterior rumado a San Francisco em uma kombi psicodélica. Claro, havia visto Janis Joplin no palco e numa tenda próxima, onde tomaram um chá e fumaram maconha juntas. Por uns instantes, enquanto a conversa se desenvolvia, cheguei a imaginar que ela trocou de lugar com a amiga, depois de uma overdose. Que trocou de roupa e identidade e fugiu para as montanhas, vivendo as décadas seguintes de paz e harmonia. Será ? perguntei.
Nossa rapaz, que imaginação. Disse sorrindo. Se tivesse feito isso não teria seguido com o mesmo nome. Certo?
Ou teria feito isso tudo porque seria absurdo e por isso mesmo improvável – retruquei sorrindo.
George latiu. Era hora de partir. Miss Joplin me mostrou sua nova sandália de couro com pequenas pedrinhas – “São do Brasil, como você” revelando sua ótima memória sobre todas as nossas conversas naquela tarde. Eu peguei uma das flores que comprei com ela, cortei e pedi permissão para colocar em seu cabelo.
Fique bem Miss Joplin. Eu prometo que não vou contar ao mundo o seu plano e seu esconderijo. Sorri. Ela fez o sinal de paz e amor “Pode contar sim. Adoro que as pessoas pensem que eu não morri, que eu fiquei eternizada”
Antes de se afastar, me ofereceu um ramalhete de lavanda. Lembre-se jovem. Não desista -me disse. Siga procurando esse pedaço do seu coração que está por aí perdido.
Você quer comprar uma flor?
A memória se foi. E voltou em segundos quando mostrei o buquê que havia acabado de comprar. Ah obrigado.
Miss Joplin e o pequeno George desapareceram na multidão. Voltei a Kingston outros sábados e nunca mais os vi por lá. Cheguei até a perguntar em algumas barraquinhas mas ninguém percebeu Miss Janis.
Pesquisei e descobri que a tal lenda dos índios nunca existiu. Ela deve ter inventado a lenda para criar um clima romântico e me vender as flores.
Um dia acordei lembrando de um amor do passado e a lenda inventada por Miss Janis brotou na lembrança – não era sentimento antigo!! Era o mesmo sentimento que eu perdi no passado e que ainda não pousou em uma nova flor.
Era só “piece of my heart”