Como o verso da canção, na luz intensa do sol a sublinhar contrastes, luz exaltando as cores, luz que envolve o mundo em constante mudança, sempre igual a si mesmo. Onde o azul é mais azul, como no fio do horizonte, onde a imagem do céu se espelha no mar, na co-fusão de um brilho de cegueira feliz. É assim que eu gosto de te imaginar, minha amiga: gosto de pensar em ti, lá, onde o azul é mais azul, da mesma cor das paredes da tua casa: o quarto onde vives há anos, quarto de uma cama só, de uma porta só, ausência de janela e espaço, na abundância do abandono; quarto, moradia de despejo, quarto-mundo, universo de dor e solidão.
O quarto azul, cápsula solta, encravado na encosta do morro, no limite do absurdo precipício, quarto azul no chão da terra da cidade-cão. O quarto-nação brasileira respira a esperança negada, a dignidade ferida; lá no fundo a rodovia range dentes podres de indeléveis barulhos. Tua casa, teu quarto, limite do infinito, me envolve no seu abraço.
Teu olhar diz que estás feliz, mesmo sem palavras, sei que estás. Tua mãe, rocha de outros tempos, abraça meu desamparo mudo frente à dor dos outros, tua mãe consola meu espanto frente ao mundo indecifrável de tanto sofrimento.
Minha amiga, foste embora sem se despedir, usando teu silêncio amplificado para avisar ninguém. Vejo tua mãe chorar, aninhada em si mesma, suportando o peso de uma realidade esmagadora. Tua gelada presença na cama de todas as dores possíveis, faz teu barraco pintado de azul ficar da cor do desgosto da morte.
Passo pela escuridão dos becos e, diante de tua porta, os amigos chorando. Entro, ultrapasso a barreira feroz do degrau, e tua mãe no lamento ancestral do desespero de quem perdeu tudo. Tu, envolvida na mortalha com teu nome bordado. Descubro o teu rosto e a luz azul das paredes destaca tua palidez imóvel. Minha amiga, percebo que a única razão pela qual te escrevo é que foste embora sem te despedir.
E lá vou eu, então, lembrando a degeneração de tua doença, a imobilidade, a rigidez de membros retraídos, as impossíveis curvas vertebrais, a deformação, mãos e pés em artelhos de bicho sofredor. Lá vou eu, lembrando o alívio sorridente de momentos raros, os passeios de cadeira entre os becos de lama; lá vou eu, lembrando a van da prefeitura para ires finalmente à fisioterapia; lá vou eu, então, lembrando tua participação ativa ao trabalho, no grupo das mulheres, além da rigidez espástica, da prisão das atrofias, da insuficiente ventilação respiratória, além da imobilidade total do corpo. Lá vou eu, lembrando.
E agora, na favela sem luz, no fundo do beco beirando o precipício, espanto a morte pensando na tua alcançada liberdade, sem mais dor, sem mais espasmos, no céu sem nuvem do mar sem fim, como esse quarto simples, azul, entre esses muros, onde finalmente poder voar, onde o azul é mais azul.
Adeus, Terezinha, adeus.