CRÔNICA

 

 

Por Guilherme Maia

 

 

 

Era 1957 e a vida se desdobrara para Coltrane. Formara seu grupo com Paul Chambers no contrabaixo, Lee Morgan no trompete, Curtis Fuller no trombone e Kenny Drew no piano e Philly Joe Jones na bateria.

Talvez não tenha passado pela cabeça de John a revolução harmônica que explodiria o Jazz como um todo, implementando o Hard Bop. O fato é que pela primeira vez em sua vida estava no comado de excelentes músicos e fazendo seu disco solo. A experiência de acompanhar Miles Davis, Charlie Parker e outros deuses, deu todas as referências objetivas para se tornar um condottiere desses loucos bandoleiros do explosivo Bop.

Comecemos pela capa: foto esvanecida em um azul aguamarina, magna opera do fotógrafo Francis Wolff. A tonalidade da cor primordial se convertendo em verde, cujo arremate é o sóbrio nome do músico. O rosto sereno e contemplativo pode ser uma aviso do que nossa audição aguarda. O olhar divagando em seu mundo de notas e revoluções. O Blue Train é um divisor de águas para o Jazz, porque é o nascedouro efusivo de um gênio. A partir de então John Coltrane ficou livre para comandar.

O músico pisou no estúdio Van Gelder Studio, em Hackensack, Nova Jersey, e gravou para o selo histórico da Blue Note. Sob seus pés a quebra perceptiva de uma realidade brutal de um império USA em seu auge, exsurgindo como a maior potência no pós II Guerra, porém afundada na intolerância ao negro e ao pensamento progressista de inclusão social. O welfare state ainda estava longe de sua ruína e a economia estava em seu ápice. Mas o aprisionamento hipócrita envolvia a todos os que sentem a necessidade de amar a vida e ao próximo. Abundância e hipocrisia, este é o tom do ar do mundo vivido por Coltrane e é contra isso que volta sua revolução estética. Isso tudo está no olhar ensimesmado e combativo da foto da capa.

Blue Train é um crescendo pujante de um riff musical que se quebra numa jam sinuosa cheio de cabriolas jazzísticas, o piano de Kenny Drew pontuando a repetição do motivo inicial marca com leveza e impositividade a linha que separa o senso de normal e a genialidade-loucura. Lee Morgan, outro gênio absoluto do Jazz, ou melhor, da Música, está muito presente no uníssono que forma com Coltrane no riff e depois se contém, pois o sax tenor domina todos os espaços musicais com participação constante do piano (sempre pontuando o voo do comandante). Depois do solo espaçado do saxofone, Lee Morgan vai à lua e volta com seu próprio solo rascante, também acompanhado do piano. Por fim, é a vez de Curtis Fuller, que desempenha seu trombone com firmeza aveludada.

Desse início de viagem para A Love Supreme se passaram oito anos e, em 1965, outra revolução vem e a constelação é: McCoy Tiner no piano, Elvin Jones na bateria e Jimmy Garrison no baixo.  O título enigmaticamente messiânico permeia toda construção de Acknowledgement; primeiro, polvilhado na jam, depois, aparecendo na linha melódica e, por fim, cantado, um cantochão monótono A Love Suprem A Love Supreme. E segue o silêncio até o ar ser rasgado com o leitmotiv do espírito místico contido no sax tenor de Coltrane – é hora de Resolution.

Para além do amor ao Jazz e à música, John Coltrane é a libertação da linguagem, é melodioso e atonal, é audível e espiritual. O instrumento é um saxofone tenor e o intuito é a integração cósmica homem-universo, porque muito além das notas musicais está o Noétos Tópos, a hermenêutica da perfectibilidade humana frente ao desconhecido e ao divino.