Havia um homem ruivo que não tinha olhos nem orelhas. Ele também não tinha cabelo, de modo que só poderíamos chamá-lo de ruivo condicionalmente. Ele não podia falar porque não tinha boca. E também não tinha nariz. Não tinha sequer pés e mãos. Não tinha barriga, não tinha costas, e espinha dorsal também não, nem mesmo vísceras ele tinha. Ele não tinha nada! De modo que não está claro de quem estamos falando. Pois o melhor é não falarmos mais dele. (Daniil Kharms – 7 de janeiro de 1937)
Muito anos antes, nos anos agitados da revolução, foi assim que o poeta previu o seu fim. Esquecido por todos morreu em Leningrado, nas prisões de Stalin, durante o cerco. Dizem que morreu de fome.
Como o homem do poema, era invisível. Um gigante, dois metros de altura despercebidos, ignorados, cancelados, evanescentes, um gigante invisível. Viveu anos no infra mundo de um cotidiano indecifrável e, principalmente, impossível de modificar. Hoje sua voz vulcânica ressoa nas multidões do centro. É ele, não tenho dúvida. Pode ser visto e, especialmente, ser ouvido de longe. Pendurada no pescoço uma placa anuncia o melhor preço, e para evitar equívocos, grita bem alto, para que todos ouçam.
Eu não sou ninguém, serventia zero, não presto pra nada. Foi exatamente assim que ele disse: eu não presto, não valho nada, não sou ninguém. Era fácil vê-lo sentado com os olhos abatidos, incapaz de responder a qualquer solicitação, mesmo às frequentes provocações, às tiradas de sarro, nunca respondia, nunca. A boca deformada pelo lábio dividido, rachado, com o palato à mostra, dentes sobrando em gengivas podres, boca caverna escura, afundou sua alma e personalidade no buraco negro da depressão, nas profundezas da alma cativa de onde não há saída.
E o poço tornou-se cada vez mais profundo, a lama cada vez mais barrenta, ele foi devorado pelas areias movediças de uma vida de dificuldades e humilhações até se tornar um não-homem, uma não-pessoa, uma das muitas pessoas invisíveis: sem olhos, sem barriga, sem cabelo, sem espinha dorsal. Tudo o que ele entreprendia, qualquer iniciativa, atividade ou trabalho que começasse, era interrompido após um curto período de tempo.
O buraco negro da latrina cósmica em que sua alma acorrentada estava, a não-pessoa na qual havia se transformado, a doença da boca cavernosa, o lábio rachado, o palato à mostra e as gengivas podres abrigo de dentes humilhados, eram seu mundo inteiro, seu único mundo, o oceano mar do desespero, o absoluto da solidão.
Certo dia, ele aceitou o convite. Um meu amigo lhe ofereceu o tratamento em um centro especializado. Foi um processo longo, as instalações públicas às vezes assustam até os mais confiantes, as filas crônicas, as ausências do pessoal, a ineficiência da máquina burocrática, a distância entre uma clínica e outra, as esperas nervosas de dias, semanas intermináveis, minavam paciência e confiança.
O fato dele ter aceito a proposta deu esperança ao meu amigo, e, em poucos meses, soube do feliz resultado da operação, soube que aquele homem de dois metros de altura havia regressado à sua cidade do outro lado do Brasil, de onde tinha saído muitos anos antes, esperando encontrar na cidade grande um tratamento rápido: sem entender o mecanismo, não se adaptou e foi devorado, achincalhado, perdeu tudo, perdeu-se de si mesmo e começou a vida infame de homem invisível.
Vivia se arrastando pelo deserto das multidões, dos palácios de cristal, das vilas, favelas, no avesso do avesso entre coisas belas desfeitas em minutos, entre desemprego e violência, álcool de botecos perdidos e mulheres cruéis que nunca vendiam amor fiado. Viveu em busca das sobras de si, procurando, procurando e, por fim, desistindo. Sem conseguir se encontrar, sentiu na pele a força da ladeira abaixo. Certo dia o convite, a decisão, a operação e sua volta pra casa. Sim o gigante conseguira.
Até que sua figura gigante reaparece atrás de um cartaz publicitário. Grita cantando o melhor preço. Canta, gritando os elogios do produto que o cartaz pendurado ao pescoço anuncia, aponta para a loja ao lado como a melhor do mundo. Sua saudação é feita por uma pausa de silêncio, um sorriso gigantesco e o dedo grande que repousa sobre sua boca. Não mais a caverna de monstro homérico, mas um alto-falante barítono capaz de falar, de gritar, de cantar ao povo inteiro que o homem invisível da poesia, sem cabelo, sem olhos, sem barriga, sem nada, hoje, muitos anos depois, recuperou os pedaços perdidos, os recolocou em seu lugar e sua boca, outrora uma caverna deformada, é agora capaz de gritar para toda a cidade que o gigante está de volta, que ele realmente existe.
De longe ele faz o gesto de um abraço e me convida a voltar para vê-lo em outro momento, depois do trabalho, quando podemos sentar no bar e tomar um café. Vou.