OLHARES

 

 

Por Clementino Jr.

 

 

“Águas que movem moinhos
São as mesmas águas
Que encharcam o chão
E sempre voltam humildes
Pro fundo da terra
Pro fundo da terra”
(Planeta Água — Guilherme Arantes — 1983)

 

Do olho d’água nasce um rio, águas subterrâneas que buscam um ponto na superfície para se expandir e começar seu curso. Talvez por isso um dos nomes conhecidos desse leito onde as águas brotam seja nascente.

O rio nasce, faz o seu curso natural, dentro do que o território lhe possibilita, se une ou não a outros córregos, se amplia ou segue sozinho e morre em algum ponto onde deixa de ser rio e se transforma em alguma outra coisa. E como tudo é contínuo, outras águas seguem brotando e criando ciclos. Os mares, lagos, valões, transpirações da natureza, geram precipitações, nuvens, chuvas e trazem variantes a estas manifestações do ecossistema e dos cursos de vida destes rios inclusive.

Sim. Cursos de vida.

Entre a vida e a água do rio tem o nascer e morrer. A confluência é quando dois ou mais rios formam um novo rio, mas este também irá desaguar em algo maior, que será responsável, em um ciclo natural, por terra ou pelo ar, pelo próximo ciclo constante de nascer e morrer de outros rios.

Então entra o ser humano chamado de “homem” na jogada. Ao contrário de todo o terreno e sua terra, pedras e vegetação, ele cria outros usos, por muitas vezes sem frutos, dessas águas, represa para gerar outros ciclos, normalmente reservados mais para poucas pessoas, e muda o curso de vida destas águas e de todo um ecossistema que estava em sua trajetória.

Em 2020, mais do que nunca, as águas ganharam um novo curso no ecossistema, pois a higiene que sempre foi um princípio básico restrito a poucos, como as águas de uma represa, se torna necessário para todos em função da pandemia e da falta de hábitos que deveriam ser comuns. Inclusive para todos.

As mesmas represas que privilegiavam uns poucos, não atendem mais as suas finalidades e outros elementos vem se unindo a essas águas, restringindo, inclusive, para os poucos privilegiados o acesso a uma água potável. O ano começa no Rio de Janeiro se discutindo o percentual de potabilidade das águas que chegam, quando chegam, às torneiras do consumidor e termina com a discussão da qualidade e eficiência, quando acessível, de uma vacina. A discussão permanece entre quem tem acesso, quando terá acesso, e qual a qualidade do que será oferecido. Enquanto a discussão for essa, será que deveríamos deixar o rio seguir o seu curso ao invés de persistirmos em interrompê-lo?

A voz de quem nega a água, de quem nega a cura, de quem nega a vida, deve ser silenciada pelo nosso desejo pela vida, sem interferências de quem vibra pela morte como sua energia vital.

O rio já não é mais o mesmo rio de outrora, assim como o Rio, assim como nós. E a água que corre agora não é a de antes e nem a que virá, mas se contribuirmos para o rio e a vida seguirem um curso natural e fazerem suas afluências, confluências e desaguarem em prol de todos nós, como parte desse ecossistema, quem sabe até o tal vírus e tantas outras respostas do planeta para nossas interferências nos deem uma trégua, ou percam sua força?

Que 2021 esteja mais na pegada desta canção de Paulo Cesar Pinheiro e João Junior, tão bem cantada pela moça de iemanjá, a divina Clara Nunes:

“Quando o sol
Se derramar em toda sua essência
Desafiando o poder da ciência
Pra combater o mal
E o mar
Com suas águas bravias
Levar consigo o pó dos nossos dias
Vai ser um bom sinal

Os palácios vão desabar
Sob a força de um temporal
E os ventos vão sufocar o barulho infernal
Os homens vão se rebelar
Dessa farsa descomunal
Vai voltar tudo ao seu lugar
Afinal”
(Forças da Natureza — Paulo Cesar Pinheiro/João Junior — 1977)