Por Paulo Henrique Martins

 

Que futuro é este?

O futuro pensado pelo Ocidente sempre foi uma bolha de ilusões escatológicas camuflada por discursos racionalistas que projetaram um mundo emancipado sobre as ruínas de culturas outras que não se enquadravam no imaginário eurocêntrico. O futuro é uma metáfora importante de nosso imaginário ocidental. Ele alimenta a promessa de uma sociedade de bem-estar material para todos(as) quando estava, na verdade, apenas manipulando o imaginário dos indivíduos para expandir a lógica mercadológica. Como observamos, agora, com o agravamento da crise e com a perda de expectativas que nos é revelada cruelmente pela epidemia, o futuro foi apenas uma narrativa criada pelo capitalismo para camuflar os mecanismos de dominação. Ou seja, na impossibilidade de se criar uma democracia ampliada no tempo presente o capitalismo prometeu um tempo futuro que é apenas especulativo, embaçando nossas possibilidades de olhar, sentir e viver o mundo do tempo presente.

O debate sobre a natureza deste conceito ilusório é antigo. O filósofo Sêneca, contemporâneo de Jesus, afirmava que “A expectativa é o maior impedimento para viver: leva-nos para o amanhã e faz com que se perca o presente”. Nos tempos modernos, a bolha do futuro não se emancipou por acaso. Ela foi reforçada com as conquistas coloniais e com o desenvolvimento do capitalismo. Na era moderna, o sonho do futuro gerou expectativas que nunca tiveram garantias factíveis mas que serviram para alimentar o fogo prometeico da expansão do capitalismo e da colonização planetária escondendo a natureza racista da ocidentalização.

O sentimento epopeico inspirou a expansão da modernidade como uma narrativa em linha reta e ascendente. A filosofia da história prometeu um mundo humano progressivamente melhor que seria articulado pelo desenvolvimento racional da economia industrial moderna. A promessa era de um futuro representado como realidade irreversível, garantida pelo desenvolvimento econômico e pela acumulação dos bens materiais e de consumo. Contudo no auge da sociedade do consumo testemunhamos a explosão da pandemia nos revelando um futuro que se desconstrói de modo inflexível para espalhar as cinzas do progresso. Pelo menos fica uma lição: a vida não é fake news e ela nos convida para pensar o tempo presente como uma arte tecida nas tramas produzidas pela criação imaginária para fixar formas institucionais sempre imprecisas.

Quando se perdeu o futuro?

A bolha do futuro começou a se desintegrar com a segunda guerra mundial quando os usos das tecnologias de extermínio nos campos de concentração questionaram a relação que se pensava orgânica entre racionalidade técnica e ética e deram visibilidade a um pacto racial que estava embutido nas perspectivas de um pacto social ilusório pensado por autores como Rousseau, Locke e Kant. O campo de concentração sempre fez parte do programa de expansão do capitalismo colonial servindo para seviciar e humilhar populações não europeias em outros continentes desde o século XVI. O horror que suscita seu surgimento na Alemanha é que pela primeira vez o pacto racista que moveu as guerras contra outras culturas rompeu as barreiras do colonial para atingir o império no seu coração, atingindo um grupo étnico como o judeu, que tem contribuição determinante na organização da modernidade ocidental.

O campo de concentração como dispositivo disciplinar do regime totalitário desfez o contrato social proposto por Rousseau e outros contratualistas que imaginavam a natureza liberta do humano branco. Mas, de fato, tais campos de extermínio apenas manifestam o contrato racista que segundo o filósofo jamaicano C. W. Mills no seu Racial Contract, de 1999, justificava o fato que os brancos tinha direito natural de explorar e submeter os não brancos.

Naquele momento histórico, a crença na filosofia do progresso com um programa racional intrinsecamente ético começou a desaparecer, o que foi observado por dois intelectuais brilhantes da Escola de Frankfurt, T. Adorno e M. Horkheimer, no clássico livro Dialética do esclarecimento, de 1947. Na época, as tentativas de conter o germe do totalitarismo que é a alma do neoliberalismo, se limitaram a pactos diplomáticos que resultaram na criação de órgãos como a Organização das Nações Unidas (ONU) e a manifestos humanistas bem intencionados como Declaração Universal dos Direitos Humanos redigida sobre os auspícios da ONU em 1946, mas que, na prática, nunca tiveram efeito simbólico efetivo para motivar políticas de paz.

Mas a teoria crítica teve dificuldades de avançar com uma denúncia mais profunda do totalitarismo como um programa que desfazia o contrato social moderno para liberar as forças do mercado com relação às injunções políticas e legais nacionais. A teoria crítica presa ao julgamento moral da desumanização em curso não soube interpretar o deslocamento institucional que o capitalismo vinha conhecendo a partir da fratura ontológica entre contrato social e contrato racial com consequências nefastas para a utopia de uma sociedade igualitária.

A crítica não soube fazer a leitura do evento trágico com uma mutação estrutural do modelo do capitalismo colonial e nacional vigente até a segunda guerra, por isso não pode desdobrar os achados teóricos do economista polonês Karl Polanyi que escreveu em 1944 um livro emblemático intitulado The great transformation. Neste livro o autor explica que as transformações do capitalismo estavam levando a uma espécie de autonomização do mercado, a um desencaixe, um desencastramento (disembeddedness) com relação à sociedade, contrariando uma tendência histórica pela qual a economia sempre se manteve encaixada na sociedade e na cultura. Caso a descoberta do autor polonês tivesse sido levada um pouco mais a sério a crítica teórica teria observado que o desencaixe do mercado com relação à sociedade (nacional) significou igualmente o desencaixe de parte importante da ciência e da técnica, levando ao surgimento de um novo poder transnacional que passou a competir diretamente com os poderes dos estados nacionais.

A privatização crescente da imaginação científica e tecnológica contribuiu para acelerar o tempo das inovações culturais pelo capitalismo globalizado, dando a impressão de um salto para o futuro e enfraquecendo os usos da técnica para finalidades sociais e comunitárias. O campo científico ficou claramente dividido entre a produção propriamente acadêmica largamente compromissada com os interesses públicos e a produção empresarial envolvida com os interesses privados. Os fundamentos morais do neoliberalismo se fundam nesta via totalitária que se expandiu fora do controle social e político dos estados nacionais na segunda metade do século XX. Infelizmente, a obra de Polanyi não foi devidamente considerada pela crítica teórica, o que foi um erro considerando a importância deste deslizamento estrutural do mercado para a reprodução social e seu impacto sobre as utopias liberatórias e sobre as perspectivas democráticas.

O desencanto da modernidade como um processo fundado numa razão eticamente emancipadora delimitou o surgimento de um novo ciclo de modernização delimitando claramente a coexistência de dos dispositivos globais de poder que vão marcar os ritmos de desenvolvimento do capitalismo depois da segunda guerra mundial. Um deles, o poder dos estados nacionais que foi construído no período anterior e que continuou até hoje a funcionar como referência central de nosso imaginário econômico, cultural e político apesar dos sonhos de globalização; o outro, o poder dos grandes oligopólios internacionais impulsionados pelas indústrias de armas, de energia, de medicamentos e de pesquisa aérea que passou a se organizar como dispositivo desencaixado da sociedade, competindo e mesmo e mesmo subordinando o poder dos estados nacionais mais fragilizados.

Nas últimas décadas, com a emergência factual do neoliberalismo os dois dispositivos de poder passaram a se fundir com a submissão dos estados nacionais ao poder do capitalismo financeiro e especulativo global. O tempo do progresso histórico que sustentava a imagem otimista do futuro foi se desintegrando devido ao peso do consumismo imediato, gerando desilusões e descrenças importantes com relação às perspectivas do bem-estar e da democracia. Por outro lado, no plano da sociedade política e civil as referências para organização do mundo se mantiveram centradas nas memórias nacionais, étnicas e comunitárias como um trem correndo pelos trilhos do destino utópico sem perceber o advento de movimentos entrópicos na curva não tão distante.

Esta é a história das segunda metade do século XX e das primeiras décadas do século XXI. Sob impulso das grandes empresas de mercado o desenvolvimento de novas tecnologias se acelerou gerando a expectativa de um mundo global uniformizado pelas tecnologias e pela inteligência artificial, sem perspectivas de futuro e achatada por um presente que embaraça nossa capacidade de olhar e viver a experiência humana real.

Há uma luz no final do túnel?

Pouco a pouco, a modernidade como programa emancipatório foi perdendo sua aura libertária e o sonho do futuro foi encolhendo para nos obrigar a olhar de modo embaçado para nosso presente abismal. O progresso histórico se tornou uma distopia, achatando o imaginário do futuro no tempo sombrio do presente. O achatamento do tempo no presente trágico vem se revelando intensamente pela desorganização das políticas públicas, pelo aumento do desemprego, da exclusão e da desigualdade, pela diminuição de perspectivas de boa vida e pela ampliação de patologias morais e psíquicas. ]

O importante a destacar é que não estamos falando de uma fatalidade mas de um programa de desdobramento do capitalismo no tempo maquínico de uma acumulação que se acelerou pela falta de freios que deveriam ter sido impostos pelas grandes potências mundiais. Assim, o desenvolvimento da técnica continuou a avançar acompanhando a autonomização do campo cientifico nas esferas das grandes empresas impulsionando o mercado global, indiferente ao aprendizado de Auschwitz, e criando as perspectivas de novas tecnologias de controle social. Neste contexto, a questão democrática aparece com novos desafios entre os quais o de repensar o contrato social a partir de pactos políticos antirracistas e antipatriarcalistas.

Todas estas mutações geram incertezas e mal-estar. Mas o sofrimento não tem apenas um lado negativo. Ele possui, também, uma face positiva quando serve como motivo para se repensar os sentidos do existir, do fazer juntos, do investimento nos afetos saudáveis e na vida comunitária aberta para acolher diferentes estilos e modos de viver. Isto nos ensina o budismo a centenas de anos. Felizmente, há reações em curso reveladas pelas múltiplas redes de ativistas, militantes e movimentos sociais e políticos que estão buscando refazer o itinerário do humano neste contexto de exaustão que tem origens no esgotamento do programa civilizatório movido pelo neoliberalismo e, agora, pela pandemia. Se para muitos a crise do sistema social era uma sombra que crescia no horizonte agora, com a pandemia, ela é um furacão que adentra nossos lares, nossas vidas e nossos sentidos existenciais.

Enfim, neste horizonte trágico da modernidade a vida não se limita a meros lamentos, nos oferecendo lições importantes para uma vida mais solidária e plena de sentidos. É próprio da natureza humana reagir, usando sua imaginação criativa, sua indignação moral, sua solidariedade humana para sair da sonolência cultural e restabelecer conexões de vida e de libertação. Há novos argumentos morais nos horizontes do presente revelados pelas lutas de mulheres e de homens que buscam recriar redes de solidariedade nacionais e transnacionais de modo a se recriar os fundamentos de um novo modo de vida ecologicamente e moralmente mais saudáveis. Entre estas mobilizações coletivas vale lembrar o Movimento Convivialista internacional, que propõe novas solidariedades entre homens e natureza, lidando com a produção de múltiplas territorialidades entre o presencial e o virtual no mundo real.


* Professor da UFPE e ex-presidente da Associação Latino Americana de Sociologia (Alas)