Por Marcelo de Campos*
A situação dos povos indígenas durante a pandemia é resultado do total descaso do estado brasileiro – municipal, estadual e federal. Atualmente, sabe-se que mais de 500 pessoas indígenas foram vítimas da Covid-19.
A falta de dados confiáveis, a incapacidade de desagregar os dados por região e etnia, além da ausência de informações sobre a situação de indígenas fora das aldeias, são os maiores empecilhos enfrentados no combate à Covid-19 em terras indígenas.
Diante da política de morte do governo federal, omisso até em divulgar dados da pandemia, iniciativas como da Associação dos Povos Indígena do Brasil tentam informar sobre a situação.
A fim de registrar e divulgar a inércia genocida do estado brasileiro para com as comunidades indígenas, o Instituto Socioambiental construiu uma Linha do tempo: A omissão do governo na tragédia indígena, apresentando “fatos que mostram como as autoridades deixaram de agir para proteger os indígenas na pandemia; pelo contrário, foram agentes da contaminação”, denuncia o Instituto Socioambiental.
Após mais de cinco séculos de extermínio pelo “governo dos brancos”, os indígenas conhecem bem a máxima favelada do “é nós por nós”.
A nação Tingui-Botó é um bom exemplo de autonomia para defender a saúde da aldeia. Localizada no Alagoas, indígenas combatem a doença sem perder tempo, conjugando medidas sanitárias e saberes tradicionais.
As ações de combate à pandemia de Covid-19 pelos Tingui-Botó são um recado para quem acredita poder “governar” vidas alheias: “lideranças tradicionais têm o papel de representar, coordenar, articular e defender os interesses das famílias e do povo”.
Quem são Tingui-Botó?
Os Tingui-Botó foram reconhecidos como povo indígena em 1980, após o professor Clovis Antunes enviar documentação de reconhecimento sobre este grupo a Fundação Nacional do Índio – Funai.
O reconhecimento dos Tingui-Botó representou o resgate de um povo indígena anteriormente disperso, em processo de etnogênese. Era a substituição de uma identidade acanhada, de caboclo, pelo orgulho étnico de ser Tingui-Botó.
Acerca dessa temática, seguem-se desdobramentos políticos, como reivindicações de posse de terras, por direito imemorial, e as lutas por reconhecimento.
O aldeamento do povo Tingui-Botó se deu em Alagoas, nos municípios de Feira Grande e Campo Grande, na comunidade de Olho D’água do Meio.
Política Tingui-Botó
As lideranças tradicionais têm o papel de representar coordenar, articular e defender os interesses das famílias e do povo
A comunidade Tingui-Botó possui lideranças tradicionais, representadas pelos caciques ou chefes dos grupos. As lideranças chegam ao cargo tanto pelo processo de escolha e/ou legitimidade, quanto pelas funções que exercem.
Para a nação Tingui-Botó, as lideranças tradicionais têm o papel de representar coordenar, articular e defender os interesses das famílias e do povo – uma espécie de responsabilidade herdada dos pais, a partir das dinâmicas sociais vigentes.
Em concordância, as lideranças políticas geralmente exercem funções específicas nos aldeamentos, como dirigentes de organizações indígenas formais, intermediários e interlocutores das comunidades indígenas.
Neste cenário, as ações do governo para com as aldeias indígenas são embasadas no modelo de governo dos brancos. Um fato que, por vezes, gera impasses frente à necessidade da conquista de direitos e de ter num cenário de desigualdades sociais e exclusão vivenciada pelos povos indígenas.
Sendo assim, as lideranças políticas indígenas são constantemente consideradas mediadoras entre as antigas lideranças e a sociedade regional e nacional.
Na lógica do “governo dos brancos” surgem situações difíceis e desafiadoras, como a pandemia causada pelo Coronavírus. Situação que exige união e cooperação entre todas as organizações políticas, para que as comunidades consideradas desfavorecidas sejam amparadas e fortalecidas.
É necessário, então, que as políticas sociais e as ações de governo impulsionem mudanças e reestruturação na dinâmica mundial atual, levando em consideração a dinâmica de comunidades indígenas, em condições socioeconômicas desiguais frente ao desafio do Coronavírus.
Auto-organização e apoio mútuo contra a Covid-19
A comunidade Tingui-Botó recebeu a notícia da disseminação do Coronavírus por meio da mídia e das redes sociais. Fato que causou pavor entre os indígenas, assim como a todo o mundo.
Quando a má notícia de um vírus com alta transmissibilidade chegou ao povoado, foram tomadas algumas medidas orientadas pelo Ministério da Saúde.
As lideranças convocaram a equipe de Saúde local, com a finalidade de compreender os principais impactos e riscos que a doença representava a população. Logo em seguida, o líder convocou todos os Tingui-Botó para uma reunião em caráter de urgência.
Ações Tingui-Botó contra a pandemia
As medidas tomadas foram restrição e limitação e saída de moradores da comunidade para outros lugares. Os Tingui-Botó que moram fora da comunidade têm acesso limitado à área. E só podem visitar a aldeia com o uso obrigatório de máscara.
Lockdown na aldeia
A liderança tradicional decretou que os portões da comunidade fossem fechados e mantidos com cadeados. As chaves das terras Tingui-Botó são mantidas com o pajé e o cacique. Ou em posse de motoristas que conduzem os veículos de urgência e emergência, em casos de alguma ocorrência médica.
Os indígenas que moram na comunidade, só podem seguir às cidades circunvizinhas devido a urgências médicas ou para a compra de alimentos.
No entanto, as lideranças fortaleceram o acesso à produção de alimento na comunidade, para que não fosse uma necessidade a compra fora da aldeia – elevando assim o risco de contágio de todo o grupo.
Partos e solidariedade durante a quarentena
As mulheres grávidas que dão à luz em hospitais fora da cidade, devem permanecer 14 dias em isolamento social. Isolamento que se dá em casas da comunidade Tingui-Botó, cedida por familiares. Durante a quarentena, mãe e bebê recebem visitas apenas da equipe de Saúde.
Suspensão de rituais
A medida de maior peso entre os Tingui-Botó foi a mudança de datas de rituais, como o Ouricuri.
O Ouricuri é o emblema do povo Tingui-Botó. Local sagrado, onde cultuam costumes ancestrais fechados. É o que orienta a doutrina, a paz e a perseverança para com o outro. É de lá que se aprende a viver em paz, em comunidade.
Segundo o cacique Eliziano de Campos, atual chefe da comunidade, o Ouricuri está entre os Tingui-Botó há mais de 140 anos. De acordo com a idade e a oração do seu pai, Plácido de Campos, um dos fundadores da comunidade, o Ouricuri não é uma tradição apenas do povo Tingui-Botó. É um nome dado à religião de várias aldeias indígenas do Nordeste.
Após análise do contexto da pandemia, levando em consideração que rituais são coletivos e provocam ajuntamentos, os Tingui-Botó tomaram, como medida preventiva, a suspensão das cerimônias.
Ainda que todos e todas Tingui-Botó reconheçam que o ritual envolve corpo, mente e espírito – o coração do povo, onde saem todos os ensinamentos sagrados que envolvem a sabedoria –, a nação Tingui-Botó aceitou a suspensão dos ritos, por saber que o sagrado também está presente nas árvores, no canto dos pássaros e nas estrelas.
banhos de raízes, chás, garrafadas e profissionais de Saúde
Os sábios Tingui-Botó diziam que viriam épocas difíceis, quando seria necessário que o povo seguisse com confiança, atitude e coragem.
Apesar da suspensão das cerimônias rituais Tingui-Botó, a tradição jamais foi abandonada no combate à pandemia. Lutamos com nossas armas, diante do risco causado por um vírus que atinge pessoas com baixa imunidade. Por isso, devemos fortalecer nosso sistema imunológico com o uso tradicional de ervas, plantas e raízes.
Os banhos de raízes, chás e garrafadas são princípios relevantes para a saúde dos Tingui-Botó, não excluindo a iniciativa dos profissionais de saúde que têm nos assistido nesses dias. É preciso também considerar os cartazes e panfleto com informação que nos instruem sobre as principais medidas para combate do vírus.
Para a nação Tingui-Botó, a sabedoria do povo é uma dádiva sagrada, dada a quem a merece. Os seres Tingui-Botó são seres humanos abençoados por sua ancestralidade, e dotados de sabedoria. Suas lutas, seus sofrimentos e suas conquistas são imortalizadas pela prática oral da comunidade. Histórias que inspiram os novos guerreiros.
Assim, detentores de saberes espirituais, os guerreiros e guerreiras Tingui-Botó cuidam de seu povo, ao ensinar os jovens da aldeia por qual caminho seguir. A precaução é uma das maiores armas em qualquer batalha. E a batalha contra a Covid-19 não é diferente. Devemos agir com cautela e consciência, reconhecendo que, ao tomar certas medidas, estamos cuidado de nós e de outras pessoas.
Mesmo que estejamos sentindo falta das reuniões embaixo da árvore principal da aldeia, seguir com fé e confiança é preciso para acreditar que dias melhores virão.
* Marcelo de Campos é documentarista, Fundador do núcleo de Cinema Tingui Filmes. É Licenciando em Biologia pelo Instituto Federal de Alagoas, e membro do Grupo de História Indígena de Alagoas, da Universidade Estadual de Alagoas – GHIAL/UNEAL.