Por Samuel Chaves*

 

Em tempos em que a realidade se impõe de forma dura e muitas vezes cruel, vamos percebendo os sintomas de uma desestruturação social e psíquica. As relações pessoais, que já careciam de afeto, em tempos de pandemia mediada por tela, mínguam. O trabalho, que dia a dia se torna mais precário, com a superexploração do megazord capitalismo-neoliberal-pandêmico, renova seu ímpeto concentrador ameaçando vidas. A educação e os seus protagonistas (crianças, educadores, famílias…) que de uma forma geral, já não eram priorizados, em territórios periféricos, são alijados do direito ao desenvolvimento pleno em troca de uma “formação empreendedora”.

Construir junto a outros, ações que nos abrem o futuro é uma tarefa necessária e terapêutica. A rebeldia contra o estabelecido, a construção de vínculos e projetos fazem com que esses espaços se transformem em pontos de saúde e recomposição mental, além é claro, de referências que apontam ao futuro.

Nesse panorama, sonhar e ousar concretizar é um desafio e também uma urgência.

A Cooperativa de educadores da Cohab II

O distrito de José Bonifácio, que faz parte da subprefeitura de Itaquera, nasce no início dos anos 80 com a construção de um conjunto habitacional de moradia popular criado pela COHAB (Companhia metropolitana de habitação de São Paulo), sendo o segundo empreendimento desse porte feito na região. No extremo leste do município de São Paulo, a Cohab II, como é conhecida popularmente, possui cerca de 124 mil moradores, o que lhe confere uma demografia muito expressiva, levando em consideração que dos atuais 5.560 municípios do nosso país, pouco mais de 190 possuem mais de 100 mil habitantes.

Tais características, trazem para a Cohab II a contradição presente em todas as periferias do nosso país: Potência criativa em contraposição com ausências de todos os tipos.

Com esse cenário, um grupo de educadores da região, em 2016, forma a Cooperativa de Educadores da Cohab II. O grupo busca dar resposta a questões como a crescente precarização do trabalho dos moradores e a promoção de uma educação inspirada em princípios humanistas e libertários. Esses educadores tomam como valores a não violência, cooperação, respeito, equidade e transformação.

E organizam o projeto com os seguintes pilares:

  • Criação de renda e trabalho no território de forma justa em equilíbrio com a comunidade e com a natureza
  • Promoção de uma educação pautada por princípios democráticos e humanistas na periferia, através de cursos pré-vestibulinho, idiomas, acompanhamento escolar e outras atividades.

Em duas salas comerciais de cerca de 30 m² são organizadas atividades que funcionam de segunda a sexta feira, atendendo crianças, adolescentes e adultos, não somente da Cohab II, mas também de outros bairros (Guaianases, Cid. Tiradentes, Parque do Carmo) e dos municípios mais próximos (Poá, Ferraz de Vasconcelos).

Superando resistências e abrindo caminhos

Ao se propor valores e princípios que tentam romper com formas hegemônicas de trabalho, geração de renda e na maneira de se pensar educação, coloca-se um desafio criativo e prático. Este se traduz em um esforço constante em buscar soluções para aquilo que se almeja. É claro que não há um “produto final” porque esse processo é contínuo. Mas com o correr dos anos, a experiência imersiva do grupo foi trazendo possíveis caminhos e respostas aos desafios colocados por esses educadores.

Atualmente 12 educadores se organizam de forma horizontal, dividindo tarefas que vão desde a gestão econômica/administrativa, marketing, coordenação pedagógica, assistência social e funções de secretária. Uma parte do grupo se dedica as funções de gestão e outros desempenham o papel de professor ou tutor nos diferentes cursos e atividades oferecidos, um grupo menor acumula as duas funções. Todas as decisões são discutidas em assembleias que costumam ser semestrais e em uma reunião de gestão que ocorre semanalmente, aberta a todos os membros.

Apesar das dificuldades impostas a esse tipo de organização que funciona e se mantém de forma autônoma e somente com o apoio das famílias, a Cooperativa de Educadores mantém atendimento a cerca de 120 crianças, adolescentes e adultos da região através dos seus cursos e atividades a preços abaixo do mercado e uma política de bolsas a quem necessita. Nesse caso, o maior desafio do grupo é seguir avançando em oferecer e ampliar os serviços e ao mesmo tempo aumentar sua capacidade de remuneração aos que trabalham no projeto.

Foto Samuel Chaves

No contexto da pandemia, o grupo foi buscando encontrar soluções para atender as famílias e educadores que tiveram suas rendas fragilizadas, ao mesmo tempo que mesmo remotamente se propôs a manter e reforçar os vínculos com os estudantes.

Paralelamente, se foi experimentando uma necessidade de se repensar as práticas e objetivos pedagógicos dos cursos para além das assembleias de estudantes e professores realizadas nas turmas de cursinho e da dimensão afetiva e horizontal intencionada na relação entre educadores e educandos que já ocorriam.

Assim, partir dos processos formativos “Escolas em transição” feito em 2019, “Aprender em Comunidade” em 2020 propostas pela Eco Habitare e orientada pelo prof. José Pacheco e posteriormente com as assessorias pedagógicas orientadas por Caroline Florêncio e Angélica Auricchio e posteriormente com Denis Plapler nas “Escolas democráticas em construção” o grupo foi encontrando maiores subsídios para repensar e recriar suas práticas.

Esse grupo manteve um encontro semanal para discutir e coletivamente elaborar os valores, princípios de ação e os dispositivos pedagógicos que estarão em acordo e serão a vivência de tal sensibilidade. Esse espaço foi servindo também como lugar de planificação e discussão das intervenções que os educadores foram experimentando ao decorrer do ano.

Assim, o ano de 2020 foi tomado como um momento de transição. Das práticas que ainda mantém a fala centrada no professor e os objetivos vinculados a manutenção do sistema de nota e apostilas das redes público e privadas da região. Para práticas que estejam referenciadas nos estudantes como protagonistas e sujeitos do processo de aprendizagem, com uma ideia de currículo que conecte os sonhos e interesses do estudante com o conhecimento historicamente acumulado e os saberes do território.

Em reuniões com as famílias, crianças e adolescentes fomos propondo essa transição e recriando o que chamávamos de “acompanhamento escolar”. Temos conseguido avançar para um processo mais personalizado e coletivo de aprendizagem, organizado em tutorias, roteiros de estudos e autoavaliação. Ao mesmo tempo, foi possível reforçar a realização da prática das assembleias como espaços horizontais de escuta, voz e deliberação coletiva entre estudantes e educadores.

Nesse processo de transição vemos que um grande desafio é o engajamento e a confiança das famílias, muitas vezes até dos estudantes, em uma proposta cada vez menos escolarizada de aprendizagem, já que há uma ideia muito enraizada de uma educação desvinculada dos nossos propósitos e sonhos, que mira somente a instrução para o mundo do trabalho, algo tão difundido, principalmente nas regiões periféricas.

Construindo novos mundos possíveis a partir das periferias

Com dificuldades e algumas limitações, mas também com a força e inspiração, o projeto da Cooperativa de Educadores segue. Esses mesmos fatores que se mimetizam no nosso território e que são também um pouco da história de cada um desses educadores que mantém o projeto em atividade.

Lembrando o geógrafo brasileiro Milton Santos, que trazia a ideia que das periferias do Sul do mundo, surgiriam os novos mundos possíveis, seguimos ousando pensar e criar educação e novas alternativas de trabalho, renda e vivência comunitária, a partir dos olhos de um bairro periférico da metrópole, para muito além dos desafios colocados pela realidade.


* Samuel Chaves é geógrafo e educador formado pela Universidade de SP. Estudante de pedagogia e professor da rede municipal de SP. Coordenador pedagógico da Cooperativa de educadores da Cohab II e militante humanista. E-mail: cec2.comunicação@gmail.com