Corria o ano de 1969 quando na sede do clube mais exclusivo da cidade, o Ministro da Economia reuniu a “nata” da confederação local da indústria para um almoço de negócios. Depois da sobremesa e do café, os senhores do trabalho dos outros e do milagre econômico foram convidados a sacar seus talões de cheque. A livre oferta servia para financiar a máquina da Oban – Operação Bandeirantes, que caçava, prendia, torturava e matava a oposição ao Regime. Graças a fundos ilimitados, a repressão entrava assim no seu período mais sombrio; de norte a sul abriam-se centros de tortura clandestinos, fora do padrão normal das delegacias e dos quartéis: as casas da morte. Em alguns desses lugares haviam fornos para queimar cadáveres.

A classe empresarial e a repressão sempre andaram de mão dadas, uma gozando dos serviços da outra. Foram capazes de construir um sistema de controle de massa, por meio do qual podiam governar o medo, construtor de consenso. Com o passar dos anos, o sistema foi exportado para os outros países latino-americanos, onde pode aperfeiçoar essa técnica investigativa, metodologias sistemáticas de aniquilação de corpos e de como fazê-los desaparecer. Instrutores brasileiros viajavam ao Chile, a Argentina ensinavam, mostravam aos colegas militares e seus financiadores como fazer as coisas direito. Passaram os anos, as décadas. O sistema repressivo continuou nos porões das delegacias de polícia e nas prisões do País inteiro.

O Centro de Pesquisas e Estudos de Direito Sanitário (CEPEDISA),da Faculdade de Saúde Pública (FSP) da Universidade de São Paulo (USP) e a Conectas Direitos Humanos publicaram uma pesquisa em que  analisam as ações de governo, os discursos presidenciais, 3049 normas federais produzidas em 2020.

A conclusão é peremptória: não houve incompetência, erros ou equívocos na gestão do País e, principalmente, da pandemia, ao contrário, Bolsonaro “executou uma estratégia institucional de propagação do Coronavírus“. Ou seja, o Brasil chegou ao número de mais de 220.000 mortes porque assim foi decidido.

Protesto realizado no Masp, na avenida Paulista. Ato contra o governo da morte e Fora Bolsonaro. Julho de 2020.

Depois de décadas, a classe empresarial continua a mesa. Organizou a ruptura da ordem democrática que conseguiu depor a presidenta Dilma Rousseff, criminalizar Lula e suas políticas afirmativas de inclusão social. A tática consiste em boicotar sistematicamente o funcionamento da coisa pública, quer por meio de leis pontuais sobre cortes de gastos públicos, quer com os subterfúgios de sempre: fazer concorrência ao Estado vendendo a presumida eficiência como serviço essencial.

Foi assim com o desmonte da escola pública, da previdência social, dos transportes, dos sindicatos, da justiça do trabalho. Não causa espanto, então, o balé macabro em torno das vacinas. Quando o Estado sabota as negociações com a China e a Índia para o fornecimento de doses prontas e matéria prima, logo se apresentam as empresas oferecendo seus préstimos para a compra privada de quantidades vinte vezes superiores.

Se o Estado fala em adquirir dois milhões de doses, as empresas, trinta e cinco milhões. O governo dá seu aval. Os senhores do trabalho dos outros, do medo gerador de consenso, podem assim adquirir vacina suficiente para imunizar os dependentes de suas empresas, em detrimento do plano de vacinação, que prevê uma ordem e uma sequência baseada, não na lógica da produtividade empresarial, mas nas necessidades dos grupos de riscos, dos mais vulneráveis. Em razão da ação nefasta dos empresários, o Brasil poderá ter a quebra da fila, pessoas jovens e saudáveis vacinadas antes de quem mais precisa.

Sem um plano de vacinação nacional, o Brasil se vira como pode por meio das políticas locais de cada Estado. Assim, como sempre, os Estados mais ricos continuarão gozando de sua posição privilegiada, e nos  mais pobres, a morte continuará sendo a realidade do dia-a-dia. O Estado deliberadamente provoca a interrupção de todas as negociações com a China e a Índia para que as grandes companhias de seguros, donas do mercado da saúde, possam assumir e transformar a campanha de vacinação gratuita em um serviço a ser vendido a quem fizer a maior oferta. Portanto, não mais uma vacina pública e gratuita, mas privada e paga.

O filósofo Achille Mbembe define como “necropolítica” o poder do Estado para decidir quem vive e quem morre, quem pode e deve viver e quem pode e deve morrer. No Brasil, a necropolítica é uma realidade diária: em Manaus as pessoas continuam a sufocar devido à falta de oxigênio.

Corria o ano de 2021: “Enfiem essas latas no rabo da imprensa, porra”, diz Bolsonaro, rodeado de ministros e apoiadores durante o almoço. Seus amigos empresários aplaudem e gargalham: a conivência e, muitas vezes, a participação direta da classe empresarial. A repressão de tantos anos atrás continua.

Confira o momento em que Bolsonaro xinga a imprensa brasileira.

A conclusão da pesquisa aqui mencionada é  clara: os mais de mil mortos que contamos a cada dia não são fruto de incompetência, de erros de gestão, mas da ação deliberada do presidente da República que executou uma estratégia institucional. Foi um massacre. É um massacre.

Protesto realizado no Masp, na avenida Paulista. Ato contra o governo da morte e Fora Bolsonaro. Julho de 2020.

P.S.:
Uma notícia de agência informa que, tendo em vista a repercussão negativa, as grandes empresas envolvidas na compra da vacina estão pensando em desistir.

Fotos: Pam Santos / @soupamsantos