Brumadinho, Minas Gerais, 25 de janeiro de 2019 – 12 milhões de litros de rejeitos derramados pela negligência da empresa Vale S.A. e todos os órgãos licenciadores envolvidos na mina do Córrego do Feijão.
Dois anos se passaram e até hoje os relatos que ouvimos de pessoas atingidas em toda a bacia do Rio Paraopeba mostra que a negligência – a mesma negligência que levou ao colapso da barragem – perdura até hoje.
Negligência que rouba o direito à dignidade humana e que faz atingidos e atingidas por esse crime virarem cobaias do experimento de Erwin Schrödinger – O gato de Schrödinger. No experimento da mineração, o gato representa todas as pessoas da rota da lama, cujo sentimento é o de estarem vivos e mortos ao mesmo tempo.
A sensação de morte em vida está presente em cada rosto, em cada olhar e em cada fala desse povo. É visível que mesmo diante de todo o movimento na região – devido as obras realizadas para retirar os rejeitos da lama derramada – a alma dessas pessoas não está mais ali. São corpos perambulando em uma cidade onde cada canto traz a marca da empresa que roubou as vidas dessas pessoas. Pessoas negligenciadas e desprezadas pelo poder do lucro.
É alarmante o número de pessoas que se queixam por falta de amparo, falta de fornecimento de água potável, de reparação financeira pelos danos causados, enfim, pessoas que sofrem com a permanência do crime em suas vidas. São inúmeras as violações de direitos impostas pela mesma empresa. A empresa que lhes tirou o direito à vida.
Enquanto essas pessoas lutam de forma organizada para garantir a própria participação no processo de reparação integral dos danos, bem como o direito à informação, o Estado de Minas Gerais atua como um grande conciliador com a mineradora em questão. Elabora uma manobra de “conciliar” interesses com a participação das instituições de justiça – Ministério Público Estadual, Ministério Público Federal e Defensoria Pública do Estado, além do Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Porém, reparem: as partes desse acordo aqui citadas não contam com a participação das pessoas descritas acima, ou seja, das centenas de pessoas atingidas pelo crime socioambiental da empresa Vale.
A luta dessas pessoas aumenta a cada dia para garantir que a empresa seja punida, segundo a legislação ambiental nacional, internacional e também quanto a reparação integral dos danos. Nossa luta é pela garantia dos direitos fundamentais, pela garantia à vida humana nesses territórios arrasados pela lama contaminada de metais pesados e sangue.
Aberração jurídica: assim está sendo nomeado o acordo que deveria garantir o princípio da centralidade do sofrimento das vítimas. E que na verdade torna-se o maior obstáculo para a garantia de direitos. Direitos esses que deveriam ser invioláveis. Sobretudo se a violação – como dito nesse acordo – vem a galope no plano de Governo do Estado de Minas Gerais.
Todas as pessoas atingidas pelo crime da Vale se manifestaram contrárias a esse acordo, repudiaram a prática do Estado em tomar para si um direito garantido às pessoas realmente atingidas. E, ao mesmo tempo em que segue o acordo, o poder do Estado continua a licenciar novos empreendimentos minerários na mesma comunidade já arrasada pelo crime de 2019. Uma atitude que parece prever que esse não será o único crime em seu quintal, que mais uma vez, e não se sabe quando, estarão novamente na página principal de jornais e revistas com mais um crime contra a humanidade.
Assim, nesses territórios, as violações dos direitos vão aumentando, impedindo a permanência de vida em qualquer sentido. Diariamente, familiares de 11 das 272 vítimas assassinadas de imediato clamam ainda pelo tão esperado encontro com os restos mortais de seus entes, por eles chamados “joias”. Luto interrompido, tamanha a gravidade e a complexidade das buscas nessa lama pesada e contaminada pela ganância.
Vidas humanas importam. A sensibilização dos poderes de Justiça deve ser discutida de forma emergencial, pois a percepção das pessoas atingidas é a de que até quem deveria garantir os direitos fundamentais transforma tudo em números, esquecendo da existência do sentimento, das emoções das vítimas, que seguem imensamente abaladas.
Os cálculos discutidos transmutam o que é mensurável em números bilionários, mas não há números que paguem a alma dessas pessoas. Não existe calculo exato do quanto custa ou por quanto se precifica o que não é negociável. O que o direito ao futuro revela nesses casos: tendo no futuro a interpretação de existência da vida, sentimento de vida, do ato de existir num mundo tão duro onde o lucro vem antes de tudo inclusive, antes do luto.
Corpos massacrados, almas enlameadas, olhares perdidos entre povoados rurais, estradas de terra, na pracinha central. Não têm mais vida, o sorriso largo, o cantarolar dos pássaros também foram silenciados pelas máquinas que trabalham 24 horas para a empresa que tomou o território. A empresa que impossibilitou a continuidade e existência dessas vidas.
Sou atingida, sou uma dessas almas que percorrem caminhos na luta por justiça, estou ainda enterrada na lama maldita tentando sair, sou além de tudo uma das almas que carrega o sentimento de ser o gato de Schrödinger dentro dessa caixa maldita chamada cava da mineração.
Mas, reverter todo esse efeito causado pela mineração, depende de um movimento simples: solidariedade diante dessa morte em vida e união na luta contra novos licenciamentos, contra os acordos de portas fechadas, contra a negligência e morosidade dos poderes de Justiça, apoio no grito desse povo que insiste em tentar sair dessa caixa na qual o poder do capitalismo nos trancou. No caso de Brumadinho por 2 anos, e em outros tantos casos por muitos mais.
Podemos e devemos rever nossos conceitos, apoiar ações de sustentabilidade, cobrar de nossas autoridades que o papel de cada um deles seja em prol das futuras gerações, seja pela manutenção da vida, pela mudança do conceito do lucro, tendo a vida acima de tudo.
Indigne-se, não negligencie.
Ilustração principal: Carlos Contente (2021) –
Nankim sobre papel – 15 x 21 cm