Mônica, 54 anos, enfermeira. Foi escolhida por ter participado da pesquisa, por ter trabalhado no departamento especializado desde o início, por pertencer ao grupo de risco. Ela diz que todos os dias, como se o perigo inerente à sua profissão não fosse suficiente, chega ao trabalho após uma longa viagem: dois ônibus e um metrô. Desde sua residência no bairro de Itaquera, até o Hospital Emílio Ribas, trinta quilômetros em linha reta, ou talvez mais.
Mônica fala com orgulho das tarefas que realiza, da dor dos outros que se torna sua própria dor, fala de humildade, dedicação, sofrimento. Mas também do orgulho de pertencer a uma das equipes líderes na luta contra a Covid, da satisfação de ter feito parte do estudo realizado pelo Instituto Butantan. E finalmente exorta todo o País a não ter medo, a vacina é segura. A vacina é segura!
Durante meses, uma verdadeira batalha foi travada entre o Governo do Estado de São Paulo e Jair Bolsonaro que, através de palavras, ações e omissões fez tudo para dificultar e “boicotar qualquer tentativa de combater a pandemia”, como diz o relatório da Human Right Watch. Vamos reler algumas frases: “a vacina é perigosa”, “eu não serei cobaia de ninguém”, “a única vacina real que existe é o próprio vírus, porque uma vez contraído obriga o corpo a produzir os anticorpos necessários, dito isso, afirmo claramente que não vou me vacinar”, “que o isolamento social acabe, a vida volte ao normal o mais rápido possível e morram quantos tiverem de morrer”.
O governo de São Paulo, desafiando o Ministério da Saúde, assina um acordo de importação de insumos com o laboratório chinês Sinovac. O presidente vomita: “a vacina chinesa não passará, são eles, os chineses, os responsáveis pela pandemia, não vou permitir que façam experiências com a população”. Mas o Instituto Butantan, o maior centro de pesquisa e fabricação de todas as vacinas possíveis, segue com os estudos. Faltava apenas a aprovação da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa).
Durante semanas, o presidente não poupou esforços para desmontar a estrutura da Agência, substituindo a administração, mudando algumas regras operacionais, tentando de todas as maneiras controlar o aparato técnico colocando seus homens nos postos chaves. Enquanto isso, o Brasil ultrapassava a cota de duzentos mil mortos e oito milhões de contágios. O desastre em Manaus pareceu abalar a consciência nacional, os hospitais desmoronando, a falta de oxigênio, centenas de pacientes condenados a uma morte atroz, sufocados, asfixiados, e não apenas os doentes de Covid, mas qualquer um que precisasse respirar com a ajuda do oxigênio, cujos estoques estavam em baixa há várias semanas.
Os apelos dos hospitais não comoveram o Ministro da Saúde que, presente na cidade durante o desastre, reuniu os médicos locais para impor o uso de remédios notoriamente ineficazes em um imaginário tratamento precoce: pessoas morrendo sem respirar, e o governo exigindo o uso de remédios imprestáveis!
Finalmente, a Anvisa se reúne em Brasília para dar seu parecer final sobre a vacina produzida pelo Butantan. Ao vivo na TV, os funcionários de carreira da Agência analisam os dados e expressam seu veredicto favorável: sim, a vacina Coronavac responde a todas as normas de segurança, funciona. Dizem-no claramente, prestando atenção a cada palavra, expressam suas condolências pelos mortos de Manaus, afirmam, de uma vez por todas, que contra a Covid não existe tratamento precoce, ou preventivo.
Poucos minutos após o anúncio, em São Paulo, Mônica é vacinada. Presentes estão o governador do estado de São Paulo e diretores do Instituto Butantan. Dizem que trabalham há meses ameaçados de morte por negacionistas de todos os tipos, e especialmente pelas milícias bolsonaristas. Mônica, puxa a manga, descobre o braço. Aqui está a primeira brasileira vacinada.
Levanto do sofá e abro a janela. Vejo pessoas nas sacadas se abraçando, outras agitando bandeiras, outras ainda gritando impropérios ao presidente. Alguém de joelho, agradece. Agora, as primeiras seis milhões de doses produzidas serão distribuídas proporcionalmente em todo o País. O ministro da Saúde, de Brasília, define o evento em São Paulo como um golpe de marketing, um golpe publicitário e, com o cinismo habitual, assume o crédito pela produção da vacina: mais uma vez, a mentira como prática governamental.
Agora não importa, o Brasil conseguiu, o Brasil tem vacina. O centro de pesquisa Fiocruz, no Rio de Janeiro, também está prestes a terminar seus estudos com os insumos da Pfizer. A vacinação em massa será organizada pelos estados. Por enquanto, não existe um plano nacional. O ministro disse que…, agora, de novo, não importa.
Ontem, enquanto o país participava da primeira vacinação em solo nacional, o presidente se retirou para seus aposentos em silêncio, nem mesmo uma mensagem no Twitter, nada. Melhor assim. Teria sido uma ulterior ofensa à dignidade de todos.
Porque agora Mônica Calazans, 54 anos, enfermeira, é o símbolo da luta do povo pela sobrevivência, é a força de milhões de homens e mulheres que resistiram apesar de tudo, ela é a imagem de solidariedade que impulsionou as comunidades mais pobres, as favelas, as pessoas de rua, a se organizarem e criar redes de apoio e acolhida. Mônica, em dois ônibus e um metrô sempre cheios, ida e volta, Mônica em perigo, Mônica imunizada, Mônica salva. Mônica levanta o punho, Mônica é todos nós, Mônica é o Brasil que queremos, Mônica é o Brasil que somos.