NOTA PRETA

 

 

Por Mauro Viana

 

 

Atriz e professora de teatro, a Dra. Genilda Maria, entre ensaios e aulas, recebeu o jornalista Mauro Viana da coluna NOTA PRETA. Na entrevista ela faz uma leitura da contemporaneidade, na perspectiva da artista de teatro, cinema e TV.

PERFIL:

GENILDA MARIA SOUZA E SILVA , 61 anos , nascida em Belém do Pará , é atriz brasileira e professora universitária de Teatro. Concluiu Doutorado em Letras pela UFRJ 2003, e Mestrado em Teatro pela UNIRIO em 1998. Possui Bacharelado em Teorias do Teatro e Licenciatura Plena em Artes Cênicas . Experiência em docência acadêmica na Faculdade de Teatro Cal, Universidade Estácio de Sá regência de disciplinas e orientação aos discentes de Pós Graduação em Teatro .

A carreira de atriz foi desenvolvida através de estudos da performance e da expressão corporal , especializou-se ainda em espetáculos feitos para espaços abertos com técnicas inovadoras de bonecos e máscaras gigantes.
Especializou-se em pequenas participações em diversos produtos de teledramaturgia e no cinema de longa metragem participou de importantes títulos , dos quais em ordem crescente estão ÍNDIA A FILHA DO SOL, de Fábio Barreto 1981, AT PLAY IN THE FIELDS OF THE LORD” Hector Babenco 1995, ALEMÃO de José Eduardo Belmonte 2017.

Sua ideologia sempre foi sensível aos movimentos sociais e influenciada pelas leituras de Brecht e Plinio Marcos, Dostoiévski Maxim Gorky Lima Barreto e os filmes italianos e russos … desenvolveu uma sensibilidade ao sofrimento dessas pessoas oprimidas pela injustiça e ao mesmo tempo um repúdio aos poderosos, aos racistas e neo fascistas. Acredita que novas gerações podem pela arte e resistência mudar o destino das pessoas que sofrem.
Ao longo de sua trajetória manteve um certo ceticismo ante as crenças, talvez por sofrimentos e injustiças sofridas na infância desenvolveu uma couraça impenetrável ante à dimensão espiritual da vida. Com a maturidade o que era ceticismo tornou-se um distanciamento de toda e qualquer crença. Alguns acontecimentos em torno de sua saúde fizeram com que se dedicasse ao catolicismo ortodoxo que também foi abandonado após três anos de prática mas a salvação de alguns problemas e os inesperados benefícios que por vezes ocorrem em sua vida são atribuídos a intervenção divina. Mas não é o que se pode chamar de praticante. Desenvolve a caridade e o amor ao próximo em ações efetivas junto aos alunos ou mesmo aos desconhecidos com o que sabe fazer melhor: ensinar.

A vida dos grandes centros urbanos, o anonimato das grandes cidades é seu ambiente preferido, cinemas, exposições de arte, espetáculos de teatro e música. Um refinamento artístico e o aprofundamento de sua percepção da arte da natureza e da existência.

As relações interpessoais desde a infância foram marcadas por uma sensação de inferioridade o que determinou uma certa rabugice e um semblante duro. Entretanto quando está trabalhando, seja como atriz ou professora, revela sua docilidade e altruísmo.

A morte está presente em sua expressão e mesmo em sua experiência artística como um dado inevitável, a presença da morte desde a infância após a morte prematura de sua mãe intensificou sua dramaticidade como um substrato significativo em sua atuação. A morte nunca será algo que não tema , não chega a se confortar com a prometida ressurreição mas acredita que a morte está sempre ao seu lado como um dado que não podemos neglicenciar e como um enigma tentamos sempre decifrar.

Acabei de escrever um roteiro cujo título provisório é NA PANDEMIA INCOERÊNCIA É MÉTODO, como congelar esta crise sanitária em peça de teatro?

Na Idade Media quando a peste grassava em toda a Europa e as atividades teatrais desapareceram quase por completo houve sim um hiato uma quase morte do fenômeno cênico . Sempre dependente da experiência humana não se podia conceber ante ao sofrimento. Entretanto as trevas da peste fizeram o teatro renascer em todo o seu esplendor no Renascimento e no Barroco. A comédia ainda que tímida ao encargo dos bufões e histriões de feira levavam alento aos sobreviventes e não deixaram que o teatro morresse.

Em momento de grande dor da humanidade como o que vivemos algo que pudesse falar aos tantos corações sofridos parece precisar ganhar um sentido tão grandioso como a magnitude maligna do vírus, a experiência cênica não pode prescindir da proximidade e do contato humano. Parece haver uma linha tênue agora entre os gêneros: o drama enamora-se do cine, a música corresponde ao verso, o desenho a dança … talvez algo que fosse tal um réquiem e que por gestos, esboços, versos e movimento … expressasse o Marco zero onde pudéssemos renascer. Não um teatro para o consumo, ou para fins unicamente estéticos, mas uma forma de registro, nas tábuas, nas telas, nas pautas, nas páginas que representem, tal como as pinturas rupestres de Lescaux para toda a humanidade, que houve uma era que tivemos forçosamente retornar à sanidade do uno e não do um, que a integração entre terra e gomam esteve apartada, que tudo perderá o sentido, mas que na correspondência semântica de todos os recursos artísticos, ouviu-se um brado uníssono que nos religasse.

Estamos no ano de 2030 mas o programa da peça aponta para 2020. Como você aborda a conjuntura brasileira daquele período de coronavírus combinado com a emergência da extrema-direita?

As gentes brasileiras que já tanto tempo sangram e se calam. Lotam becos e vielas deixadas à própria sorte. Morreram muitos anônimos e morrem ainda. Como podem ainda cantar e sorrir? Porque meu povo tem essa natureza pacífica e resignada? Não por falta de heróis e bravura .., posto que basta um único dia dessas e desses brasileiros para que conheçamos sua incrível força de sobrevivência, por seu valor moral, por sua performance artística, ou seu tino inato pra driblar as vicissitudes.

O que necessitam … é aquilo que há, mas não lhe dão. Não lhe damos, nós professores, nem médicos, nem policiais, nem políticos, nem juízes e bispos. Daí é que nada saíra mesmo. Eles terão que forjar a liberdade com suas próprias mãos e palavras. Acredito num levante de uma geração que fatigados do ódio e assumindo suas alteridades não como bandeiras mas como ferramentas de engenho artístico, científico em todos os campos do conhecimento e da experiência humana, sonho com a libertação e a prosperidade econômica aos sujeitos silenciados do passado e do presente, que ocupem todos os espaços do campo intelectual e artístico dominado por uma fala hegemônica e totalizante.

Como seria a mesma história no cinema?

O magnífico poder da imagem em sua inexorável e clara mensagem é o suporte mais eficiente para que as contradições e as evidências do flagelo sejam exibidas à posteridade. A emergência do momento os descasos com a vida humana praticados de forma despudorada e cruel registradas ganharão força e contundência para a consciência das massas. As contradições entre a indústria cinematográfica de consumo imediato inócuo tem que conviver com produtos independentes ou mesmo em plataformas digitais que divulgam conteúdos interessantes ao nicho de público esquecido, ao lado do hip hop, do rap , do funk o cinema representa vozes silenciadas e formação de opinião engajada na sociedade contemporânea, sobretudo brasileira.

E na televisão?

A TV brasileira foi responsável por muito tempo pela formação das mentalidades brasileiras. Através de seus produtos foi difundido muitas vezes conteúdos depreciativos, ofensivos às mulheres, Aos nordestinos, aos gays, aos negros, orientais, idosos. O resultado foi a criação de uma geração pouco criativa e eivara de preconceitos. Hoje o próprio veículo absorve as mudanças sempre ricas e legítimas na linguagem e nos hábitos e comportamentos ditados pelos jovens de comunidades, que criam seu próprio dialeto, sua estética no vestir no dançar … Mas sem dúvida não se pode deixar de reconhecer seu poder de encantamento e alcance em todos os lares brasileiros, para o bem e para o mal. No momento presente o jornalismo global apostou na denúncia do descaso das autoridades ante ao avanço da pandemia, mas é visível os motivos políticos que subjazem às reportagens melodramáticas. Jornalismo sem Isenção e pouco opinativo , informa mas não analisa em Profundidade o fato. Na ficção excetuando alguns bons exemplos sobra eficiência técnica e interpretativa mas Menos contundente com determinados temas, autores censurados previamente devido aos milionários contratos com os patrocinadores.

A televisão ainda é a melhor empregadora para atrizes e atores de teatro?

Impossível negar o alcance da tv aberta na carreira de um ator. Um tipo de consagração que a família almeja, os amigos etc e até o jovem artista recém formado só se sente ator verdadeiramente quando ostenta o crachá da emissora ou posta no Instagram sua presença dentro dos estúdios. Interessante entretanto que a geração que vejo entrar no mercado hoje aposta em produções caseiras e experimentos próprios. A própria emissora passou por um empobrecimento e a diminuição de cachets e contratos jogou um balde de água fria nos que pensavam nesse mundo de sonhos que não existe mais.

Mercado se diversifica com produtos para as tvs pagas, investidas em cursos e formações para o mercado cinematográfico e mesmo o de musicais para os que tem vocação pra o canto e dança. Ganham o teatro e o cinema e os artistas se conscientizam sua há vida e trabalho extra muros do Projac. Termina que quando se dedicam ao teatro e estudam acabam sendo vistos pelos pesquisadores de elenco. Mas confirmo que como atriz adoro a felicidade de participar de algum produto, adoro a adrenalina entre o nervosismo e a tranquilidade de achar o tempo certo para a emoção que a cena pede.

O advento da internet e seus incontáveis usos mexeu com a formação de atores e atrizes profissionais? Quais são as escolas clássicas do teatro universal?

Predomina de forma inegáveis a escola naturalista quase como uma totalidade. Parece ser como uma experiência que encanta a plateia a ilusão de realidade promovida por bons atores que dominam a técnica difundida por Stanislavsky. Estética entretanto que parece ter esgotado suas possibilidades na teledramaturgia transformaram a performance naturalista num hiper-realismo onde é proibido representar . Onde o menos é mais . Quase que te proíbem interpretar: coibindo exageros aproximamo-nos da verdade. Parece entretanto que o público acostumou-se à essa estética comportada e uniforme e por vezes alguns atores expressam uma naturalidade verossímil até , mas oca , que não tem a subjetividade do artista. Não me refiro a uma subjetividade envaidecida dos galãs e divas a subjetividade da personagem, o seu campo, o seu páthos trágico.

A beleza do naturalismo ao meu ver ocorre quando o ator vislumbra a essência humana que há em cada personagem, a sua verdade, o que há nele de verdade humana, demasiada humana. Seja um vilão ou herói, o caracter, ou a persona pode ser representação fiel da vilania, da crueldade, da premeditação ou nos heróis sua capacidade de doação, da caridade e de sua lealdade. A aventura naturalista forja um simulacro da vida e convida o espectador ao testemunho e veredicto sobre o enredo e destino das personagens, dos seus conflitos e paixões.

Totalmente diversa da experiência do teatro do distanciamento inventado por Brecht : cabe aqui ao intérprete do teatro épico tarefa que não se reduz à mimese fiel da personagem em seus conflitos internos. A personagem é quase uma alegoria e seu sofrimento e seu destino estão atados ao tecido social onde estão inseridos. No drama épico temos menos progressão dramática e eventos cênicos, movimentam a ação atores que atuam em forma córica, como vozes que juntas ampliam uma eficiente narrativa dramática, rica e enfática, que por diversas vezes interrompem a ação dramática antes dela se tornar ilusão melodramática que afasta o público da reflexão, para dar lugar aos contundentes canções do parceiro musical Kurt Weill, comentários em versos ilustram e enfatizam conteúdos que devem ser sublinhados.

Tal estética que emana dos movimentos do campo social e político me parecem estar mais de acordo com os nossos tempos. A complexidade da cena atual entretanto aponta para a intensificação da experiência do ato cênico, ou na sua santificação, investimento no sagrado primevo do fenômeno e a purificação que a experiência ancestral do drama oferece à plateia. Cada vez mais acredito que não é possível perder de vista o conceito primordial e sagrado no ato de fazer e de assistir um espetáculo.

Você assiste a teatralidade do cotidiano?

Observo o crescimento da noção do mundo como representação , semelhante fenômeno já tão decantado aumenta minha percepção sobre a recepção, sobre o público. Diz muito sobre a vontade de sair do anonimato de ganhar pertencimento e atrair admiradores. Não vai aí nenhuma crítica sobre essa imersão cotidiana na auto promoção de uma persona que investe o indivíduo como uma indumentária para sua atuação no cotidiano.

Fato mais antropológico com vieses psicológicos que nem me aventuro a interpretar. Observo a galeria de tipos que são criadas, criaturas ficcionais destinadas ao espetáculo vicário. Prato cheio para atores atentos esboçarem personagens da contemporaneidade. Por outro lado gosto da democratização do gesto mimético ancestral de interpretar o que reforça a necessidade ontológica do fenômeno, tanto pela expectação, como pelo ator.
Vejo que ainda há traços de teatralidade cotidianas e mesmo coletivas que ainda não foram suficientemente exercidas e valorizadas, como o carnaval e as escolas. Os folguedos e bailes de subúrbio, a estética dos bailes charme  que exibem uma teatralidade própria , os blocos de Clovis. As folias de Reis ricas em conteúdos culturais, as festas juninas de Campina Grande, Tamboré de Crioula, o Jongo de Madureira, os rituais de umbanda e candomblé. Essas manifestações reunidas as vezes por uma categoria que ao meu ver reduz sua importância são esquecidas e desvalorizadas mas fazem parte da feição do povo brasileiro e a teatralidade não está nos livros ou nos textos escritos ela é o fenômeno per si. Ela é corpórea e viva.
Alguns autores e grupos teatrais sabem aproveita essas informações preciosas. Como o fizeram Shakespeare, lope de Vega e Suasuna, Patativa …

Se o Brasil fosse um grande teatro, como  seria a programação de quinta a domingo?

Seria imprescindível a comédia e a sátira e mesmo a farsa, música e melodrama também parecem ser ao gosto do público, lascívia e belas mulheres, muita música, negros e negras em minúsculos biquinis de paetê e bateria de escolas de samba … brincadeira isso seria para agradar o público bem macho alfa …
a poesia, slam, performances e peças de autores que promovesse a emancipação feminina, diversidade étnica, representatividade LGBTQ+, ação social e política e diretrizes para a educação e ciência.

Na medida em que as relações sociais estão cada vez mais próximas da virtualidade da ficção, qual será a função da arte, em 100 anos?

Imagino que tornar-se-á uma experiência espiritual de ascese e evolução.

Como subverter telas em palcos?

Acho que é o momento propício de fusão das poéticas , as artes estáticas como a pintura nos ensinam as marcações cênicas e a iluminação … precisam ser revisitadas e seriam bem-vindas experiências e intervenções em clássicos como Guernica de Picasso e esculturas e instalações inspiram espaços onde caberiam situações cênicas interessantes . Também são promissoras as performances que resultam em produção de telas carregadas de significado.

Fale, comente sobre o que você quiser.

Acredito que ressignificar a arte, emancipar vozes opressas, apoiar-nos mutuamente como artistas e irmãos, eleger líderes que reforcem nossos valores e padrões artísticos e filosóficos, significara um passo decisivo pra emancipação e liberdade será dado pelos jovens brasileiros, que viveram em 2020 e que ele sobreviveram.