CRÔNICA
Por Marco Dacosta
Dona Aracy, minha professora de História, na antiga oitava série, sugeriu-me um trabalho sobre a Guerra de Secessão. Era o primeiro tópico da matéria sobre história norte-americana, que ela fazia questão de destacar, de forma incomum naqueles tempos, especialmente para a nossa idade. Foi com ela que descobri onde ficava o Sri Lanka e que na Índia também se falava português. No final dos anos 70, a senhorinha professora de voz suave e olhar curioso dava aulas com um caderno de notas amarelado, com as marcas de tantos anos de magistério. Foi ela a primeira a ouvir minhas gravações dos programas da rádio Moscou, cujas transmissões eram censuradas pelo regime militar e que eu levava escondidas em fitas cassetes para a escola. Seus olhos brilhavam quando percebia que seus alunos desafiavam as regras, mas sempre alertando “Não fale pra ninguém que você se interessa por isso – não podemos falar de política. As aulas de Moral e Cívica eram puramente políticas, descrevendo as funções de governo, mas não havia espaço para crítica, não nos estimulava a pensar. Era um manual de como ser cidadão obediente.
Para ela, mesmo sem nunca ter saído do Brasil, o mundo estaria cheio de conhecimento e contradições que nós precisávamos experimentar. Dona Aracy não tinha carro e nem apartamento, vivia de aluguel, entre livros e memórias, mas era categórica em afirmar que o melhor da vida era ter experiências de vida e não bens. Acreditava que a curiosidade pelo mundo nos faria explorar todas as culturas e formas de pensar. Eu tive muitos professores depois dela, que igualmente me inspiraram, mas nenhum como ela, nesse sentido de me despertar uma intensa curiosidade pelo mundo.
Por incrível que pareça, foi nela que pensei naquela tarde, quarenta anos depois, quando vi uma placa histórica em Charleston, na Carolina do Sul, onde eu vivia, que registrava aquele local como a instalação militar onde foi executado primeiro tiro da guerra que eu havia estudado na pequena escola, em Rocha Miranda, no Rio. De certa forma segui os conselhos de Dona Aracy por toda minha vida, me integrando a outras culturas, saindo do Brasil e perdido no mundo, coletando sons, cores e cheiros, como se ainda estivesse preparando trabalho escolar, com cola e tesoura, para grudar na cartolina e apresentar na escola.
Nesse caminho por descobertas sensoriais, cortei os pântanos e as plantações de algodão do sul dos Estados Unidos, ouvindo no ipod cânticos e blues, enquanto o velho Greyhound, um ônibus “pau de arara”, circulava pelas longas estradas da Geórgia. Um dia, na pequena Delonegah, um vilarejo cheio de antiquários, me transportei para as telas de “O vento levou”, filmado por ali, com mansões e suas colunas gregas brancas, que hospedaram as elites brancas do século dezenove e onde a escravidão fez suas maldades mais cinematográficas. As cicatrizes dos tempos de secessão ficaram e as bandeiras confederadas ainda flutuam em algumas varandas.
Não muito longe de Dalonegah fica Stone Mountain e uma trilha dos índios Cherokees, O caminho fica a poucos metros da gigantesca pedra onde estão gravadas as silhuetas de três homens a cavalo: são eles Robert E. Lee, Stonewall Jackson e Jefferson Davis – ícones da conturbada e complexa guerra que até hoje assombra milhões. Em junho de 2015 um jovem branco entrou em uma Igreja na Carolina do Sul e disparou contra várias pessoas, causando comoção nacional e colocando fogo nos conflitos raciais. Descobriu-se depois que em seu quarto havia uma grande bandeira confederada, fato que aumentou ainda mais os movimentos que pedem a remoção de bandeiras e símbolos supremacistas brancos, dos grupos derrotados na guerra que abalou o país entre 1861 a 1865.
Nasci exatamente cem anos depois do conflito mais complexo da sociedade norte-americana. Quando ainda iniciava a andar no distante Rio de Janeiro, a Geórgia ardia em conflitos de rua e sob a liderança de Martin Luther King e sob as lágrimas e revoltas causadas pela morte de Malcolm X. Mais quatro décadas se passaram desde as conquistas de direitos civis e quebra da segregação racial, e ainda vejo nos olhares e manifestações públicas e explícitas de orgulho racial branco em muitas cidades que passei na Flórida, Geórgia e em South Carolina.
Caminhei na trilha dos Cherokees e a única referência que me vinha em mente era a fantasia do Cacique de Ramos. Que irônico ter sido criado vestido de índio americano no carnaval carioca e descobrir-se nas terras onde os inspiradores da fantasia circulavam por centenas de anos. Todo o trajeto foi contemplando a impressionante montanha – e ouvir que há quem a deseje destruída porque o lugar atrai milhares de supremacistas em busca de identidade e força.
Meus sentimentos pelas andanças no sul são mistos: de um lado me encanto com a generosidade, a hospitalidade e a comida. A mistura de Minas com a Bahia não me sai da cabeça, mas ao mesmo tempo percebo que as feridas daquela guerra ainda estão bem presentes e é uma sensação nova e diferente para quem foi criado sem consciência racial. Ciente da minha latinidade, de pele branca que engana ao olhar, tenho meu trânsito facilitado e consigo ouvir e perceber coisas que alguém de pele negra não teria acesso. Alguns racistas parecem confidentes em compartilhar certos pensamentos quando o outro “parece” ligado a sua ancestralidade. No Brasil, meus privilégios sempre me impediram de perceber certas coisas. Aqui é um aprendizado diário como a questão racial molda o país, sua estética e até como as casas são feitas e onde as pessoas moram.
Antes do almoço, no dia que caminhei pela primeira vez nos passos dos Cherokees, parei para descansar em um banco de pedra, na frente de uma casa vitoriana, cheia de árvores e flores. Posicionei-me para fazer umas fotos e um homem se aproximou
- Linda não é ?
- Sim – respondi e segui fotografando.
Thomas, como se identificou, disse-me que seu pai sempre o trazia lá quando ele era criança. Agora retornava pela primeira vez, já adulto, para trazer os filhos. Já estava voltando para seu carro em direção a Atlanta e se ofereceu para tirar uma foto minha – estávamos naquele período histórico que futuramente se chamará “Pré-selfie” – e quando pedimos a todos na rua o favor de tirar nossa fotografia.
Ele fez a foto, me devolveu a câmera.
Depois da revelação do filme, prestei atenção na placa logo à direita, na outra parte do portão. “Lugar de fundação da Ku Klux Klan”. Só então entendi o significado daquele lugar e porque Thomas estava por ali com seus filhos, ensinando a intolerância que aprendeu com os pais. Provavelmente seus filhos também voltarão a Stone Mountain e grupos ainda estarão lutando para apagar da pedra a grande escultura.
A minha foto foi destruída assim que percebi do que se tratava o lugar.
Em um gesto solitário, apaguei a memória daquele momento, como derrubando uma estátua de um general confederado, ou rasgando uma bandeira. Lembrei de uma tarde na Buxton Books, em Charleston, quando vendia livros e uma cliente comentava a retirada de bandeiras confederadas da cidade: “derrubar estátuas é tentar apagar a história – disse.
Sem medo de perder a venda, retruquei “derrubar estátuas também é fazer história”. Ela sorriu sem graça, pagou e se foi.
Dona Aracy – de onde estiver – vai me entender. Não basta conhecer o mundo. É necessário seguir estimulando a imaginação e a que as pessoas valorizem as experiências de vida. É preciso seguir derrubando preconceitos e certas estátuas e ainda ter coragem para rasgar certas bandeiras.