Por George Friedman*
A partir de 1º de janeiro, a Grã-Bretanha concluiu o processo de saída da União Europeia (UE). A UE garantiu que todas as consequências mais abomináveis assombrarão os britânicos. Certamente, haverá consequências econômicas para o Reino Unido, mas é difícil imaginar que a retirada da segunda maior economia da Europa não trará consequências significativas também para a Europa. No mínimo, a conclusão do processo de saída da Grã-Bretanha do bloco abala um mito sobre a UE. O nome “União Europeia” havia se tornado sinônimo de “Europa”. De fato, a recíproca nunca foi verdadeira, pois havia nações europeias excluídas e desinteressadas em fazer parte do bloco econômico, como a Suíça e a Noruega, que escolheram uma relação de não membros. Mas com a Grã-Bretanha como um outsider, a sensação de que a UE fala pela Europa simplesmente evaporou. A Grã-Bretanha é parte fundamental da Europa, um dos países da aliança que garantiu a liberdade da Europa na Segunda Guerra Mundial e, voltando no tempo, tudo começou lá na invasão romana da Inglaterra, um dos inimigos de ocasião da Europa e salvador. A Grã-Bretanha tem sido uma força definidora na Europa, e agora abandona a UE. Essa saída desafiará o bloco econômico de muitas formas, sendo a primeira a de que a UE não é mais sinônimo de Europa. O que vemos agora é que existe uma outra Europa: a Grã-Bretanha.
Desde a decisão do referendo, surgiram duas questões. A primeira esteve ligada aos opositores britânicos do Brexit, que poderiam derrubar o resultado do referendo. A segunda residiu na dúvida se a UE poderia adotar alguma postura em relação à saída da Grã-Bretanha, sem um parecer extremamente conciliador em relação aos demais países da UE. Por vezes, essas duas forças pareciam trabalhar em conjunto para formalizar o Brexit. No final das contas, elas falharam, embora Bruxelas prossiga com seu papel de guardião das sanções, até que os britânicos parem de comprar automóveis da Mercedes para favorecer a Lexus. Aí sim, o poder central da Europa, leia-se a Alemanha, colocará um fim às medidas punitivas, e a UE seguirá seu rumo.
A verdadeira questão agora concentra-se no fato de a Grã-Bretanha estar buscando definir o seu lugar no mundo. É uma questão estranha. No momento, não há guerras de vulto no continente europeu, vale dizer, há pouco a temer em relação às potências europeias, militarmente falando. Essa é uma situação inusitada, para dizer o mínimo. Entre 1945 e 1991, a Grã-Bretanha enfrentou a ameaça soviética. De 1914 a 1945, a Grã-Bretanha enfrentou a ameaça alemã, com uma trégua no intervalo entre as grandes guerras. Agora, a ameaça, se é que existe, é distante e teórica. A Grã-Bretanha continua sendo um dos membros da OTAN, mesmo não sendo de fato uma entidade europeia, ainda que a maioria de seus membros sejam europeus. É fato que são os Estados Unidos que fornecem o poder militar em potencial à OTAN, e a Grã-Bretanha é uma das poucas nações europeias a possuir uma força militar significativa, e até mesmo de alcance global, como parte do núcleo de países da OTAN.
Os Estados Unidos e Grã-Bretanha foram aliados de primeira hora nas duas guerras mundiais, na Guerra Fria, na Tempestade no Deserto, no Iraque e no Afeganistão. Algumas dessas guerras podem não ter sido sensatas, mas consolidaram as relações entre as forças armadas desses países. Para os países europeus continentais, destroçados pelas guerras mundiais e aterrorizados pela Guerra Fria, a questão principal passou a ser o foco na economia e na prevenção de conflitos. A Grã-Bretanha fica do outro lado do Canal da Mancha, de frente para uma região que historicamente a tem arrastado para conflitos, mas que por um milênio não conseguiu invadir o seu território insular. Ao olharmos para a história da Grã-Bretanha vemos que essa nação foi moldada pela necessidade de intervir na Europa devido à fragmentação do território continental. Assim, vemos que o que é inconcebível para a Europa é uma realidade histórica para os britânicos.
O problema da Grã-Bretanha é que o país por si só não é capaz de controlar a evolução da Europa. Na Segunda Guerra Mundial, os Estados Unidos tiraram a Grã-Bretanha de seu império e limitaram tanto sua força quanto seu alcance. Os britânicos ressentiram-se da política americana do pós-guerra, mas tiveram que conviver com essa política, o que faz da Grã-Bretanha um mestre em conviver com o inevitável. O alinhamento com os Estados Unidos, de modo geral, funcionou bem. Durante a Guerra das Malvinas, foram as imagens dos satélites americanos passadas à Grã-Bretanha que permitiram uma vitória rápida. Em guerras recentes, americanos e britânicos lutaram juntos com uma facilidade que nenhum dos dois tinha desfrutado com outros aliados. Desde as operações militares às de inteligência, os dois países do alto de suas respectivas soberanias costuraram alianças na medida em que seus meios os permitiram, sem depender de mais nada. Independentemente da forma como os Estados Unidos foram rigorosos nos tempos do império britânico, os dois países lutaram juntos um século de guerras contra os alemães, em que pese o constante atrito com os franceses ou outros aliados. Recentemente, os britânicos enviaram um porta-aviões para o Pacífico Ocidental em apoio às operações dos EUA.
A aliança de britânicos e americanos vai mais além. Juntos fazem parte do “Five Eyes”, um agrupamento de cinco Estados, incluindo Austrália, Canadá e Nova Zelândia, que firmaram um compromisso de compartilhar inteligência. Essa cooperação militar é valiosa, mas nada fora do comum. O fato de qualquer um desses países de poder usufruir da inteligência coletada por qualquer um dos outros “quatro olhos” é extraordinária. Esse pacote de inteligência é parte de uma cooperação militar mais ampla. Os canadenses revezam com os americanos no Comando de Defesa Aeroespacial da América do Norte. Os australianos operam na mesma região que a China. Os neozelandeses com um mínimo de força e muito mais cautela, compartilham apenas os dados de inteligência. Mas o que todos os cinco países têm em comum é que eles lutaram do mesmo lado nas guerras mundiais e em outros conflitos.
Ao perguntarmos onde a Grã-Bretanha está, algumas respostas são possíveis. Inicialmente, o foco no comércio é importante, mas os mercados norte-americanos são tão grandes quanto a UE. Em segundo lugar, sabe-se que a Europa é altamente imprevisível e frequentemente volátil, enquanto a presença da Grã-Bretanha na OTAN a mantém como parte da Europa ao lado dos Estados Unidos, e, portanto, um ator de peso. Por fim, os Five Eyes, que é um projeto oriundo da Grã-Bretanha, mas que evoluiu e ganhou vida própria, mantendo essas nações concentradas em algo que frequentemente é mais importante do que qualquer outra coisa: a guerra e sua prevenção com o auxílio da atividade de inteligência.
As questões envolvendo a Irlanda, Escócia e o País de Gales provavelmente serão contidas, mas por enquanto eu traço o seguinte argumento. A Grã-Bretanha não é mais o governante de um império global. Ela não pode conviver como parte da Europa, mas deve alinhar-se com os demais países. Os Five Eyes, como um sistema de alinhamento das atividades de inteligência com a militar, que já está em uso e não precisará ser negociado. A aliança é suficientemente autônoma para que um desses países seja obrigado a fazer mais do que compartilhar a inteligência. Essa aliança também está vinculada à história. E essas cinco nações podem ser uma força a ser considerada, assim como um mercado já compartilhado e prontamente aberto. E cada nação tem interesse nessa aliança.
Não é o caso para grandes entusiasmos. Lembremos que a fricção está na natureza da besta. Porém essa aliança já está funcionando e estendê-la ao campo econômico (considerando que já existem muitos acordos de comércio em vigor) diria que é o próximo passo racional a ser dado.
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*George Friedman (Húngaro; seu nome de batismo é Friedman György, nasceu em Budapeste, em 1º de fevereiro de 1949) é um geopolítico americano, nascido na Hungria, e estrategista em assuntos internacionais. É o fundador e presidente da Geopolitical Futures, uma publicação on-line que analisa e faz análises prospectivas do curso de eventos globais.
Traduzido do inglês por José Luiz Corrêa / Revisado por Heloísa Dalcy