CRÔNICA
Por Marco Dacosta
O ônibus balança, mas avança pela estrada de terra vermelha. Estávamos chegando a Imperatriz, no interior do Maranhão, e era um verão de sol escaldante, no final dos anos 70. Ao meu lado, minha avó Alaíde abre um pote com sanduíches e sinto o cheiro também das bananas, do salame e das azeitonas que levava naquela viagem de três mil quilômetros, do Rio até Belém do Pará. Íamos visitar meu tio, militar que havia sido transferido para lá.
Ele pagou as passagens e nos ajudou a conhecer o porto fluvial, os búfalos da ilha de Marajó e a chegar tão longe, lugar onde nenhuma criança da minha escola havia chegado. Fui “ver-o-peso” e o mar sem fim que era o Rio Amazonas, navegar de bote nos igarapés. Brinquei com o urucum e vi arco e flecha.
Era lindo poder mergulhar em cheiros e cores tão diferentes. “Toda vez que viajo, viajo imenso” – como já disse Fernando Pessoa sobre suas andanças em terras lusitanas.
Depois daquela aventura, a convite de outro tio fui conhecer o interior de São Paulo, onde as estradas cheiravam a laranja e limão e o frio de manhã cedo congelava o gramado do quintal – fenômeno jamais visto por uma criança carioca, que detalhei meses depois ao meu professor de ciências “A folhinha fica dura e pode até quebrar”, expliquei.
Seja na estrada, na velha litorina que cruzava os caminhos de ferro nas montanhas da serra da Mantiqueira ou em algum velho carro, passei a infância viajando, favorecido pela família maternal, nômade, que estava espalhada por todo país. Lembro de ter visitado todos os tios e tias – menos meu avô, um coronel “desquitado” que vivia em eterna jornada pelo país , um bye bye Brasil sem circo, em um pequeno trailer, se apaixonando e seduzindo mulheres por onde passava.
Após chegar à Rodoviária Novo Rio, o caminho até Oswaldo Cruz era uma outra aventura, para uma família cheia de malas, como retirantes da seca em busca do paraíso. Era o pau-de-arrara urbano, com gente pendurada nas portas. Na roleta, quando conseguíamos passar, recebíamos fichas plásticas coloridas para colocar em uma urna, que ficava na porta de saída como comprovante do pagamento. A urna era de vidro e ficava lotada de pedaços coloridos, Eu ficava hipnotizado por aquilo. Cada rota tinha uma cor. Durante anos foi a minha recordação daqueles tempos. A cada viagem, diferentes cheiros e roupas, fotografias guardadas numa câmera que levavam semanas para revelar. Eram os anos da CTC – companhia estatal de ônibus que reinava no subúrbio carioca nos anos 70 com seus veículos caindo aos pedaços. O aquecimento do capô do ônibus, o barulho da marcha acionada e arranhada bruscamente pelo motorista, tudo era sufocante mas único e a cada dia tinha uma surpresa, um passageiro pregando evangelho ou algum bebado gritando blasfêmias.
Sem e-mails, celulares e a vida em tempo real da TV, quando voltávamos éramos surpreendidos com a longa listagem de mudanças e tragédias pessoais que ocorriam em nossa ausência. Sempre havia um vizinho para nos receber no portão e nos contar os dramas e até da novela, já que em muitas cidades não havia ainda o sinal da TV Globo e Tupi.
Ficar sem TV não significava nenhuma tragédia, mas era importante saber da novela. Minha avó Iracema mantinha um caderno de escola anotando em cada página um resumo do capítulo, assim podia contar a minha mãe e primas o que aconteceu nas novelas em nossa ausência. Era nosso vídeo cassete falado – e dramatizado nos intervalos quando tocava acordeom e falava de sua vida, também imensa.
Podíamos nos ausentar de tudo, menos dos detalhes da novela das oito. Me lembro do capítulo de Selva de Pedra, quando a cidade parou para acompanhar o julgamento de Cristiano, personagem vivido por Francisco Cuoco. Mais tarde, quem matou Salomão Ayala em “Pai Herói”, de 1977, virou a grande pergunta entre os nossos pais – numa referência a um mistério numa novela de Janete Clair. O rádio havia sido substituído pela Televisão e eu era testemunha disso, ao nascer no capítulo final da novela “Direito de Nascer”. Fascinada pelo folhetim, minha mãe obrigou o médico a relatar o drama na hora do parto. Os médicos me trouxeram a um mundo ao som de uma novela em preto e branco.
O cheiro da aventura? Voltávamos das viagens com um aroma diferente no corpo. Lembro-me de quando fui ao Pará, voltei com cheiro de Patchouli. A minha avó chegou com uma bolsa de semente de açaí, que tinha um odor diferente e bom, como uma alfazema selvagem. Quando voltava de Juiz de Fora traziamos na mala o cheiro da linguiça e também de queijos que vinham em plásticos cheios de uma água salgada.
Os vizinhos e amigos ficavam fascinados com a abertura das malas – que representava um ato de descobertas e narrativas fenomenais. Era nossa hora de relatar o que havíamos visto, comido e vivido. Era a hora de superar nossa pobreza compartilhando momentos de todas aquelas viagens sensoriais – inéditas para a maioria dos vizinhos. Era como ser de uma família de ciganos.
O tempo passou e essas experiências de viagens foram substituídas pela comodidade e padronização. Não sou saudosista, muita coisa boa veio com tudo isso, inclusive a possibilidade de poder finalmente viajar pelo mundo. Nas últimas décadas, com a popularização das viagens, pacotes, redução dos custos, Airbnb, Uber, formas alternativas de transporte e de hospedagem como couchsurfing, viajar virou rotina, muitas vezes monótonas. Pelo menos para quem gosta de mergulhar nas culturas e passar mais tempo conhecendo as pessoas, ficou mais complexo viver essas experiências de um mundo novo e desconhecido a cada trajeto.
Hoje posso me transferir para Buenos Aires por alguns dias depois de ter me transferido para Miami e Washington onde poderei transitar por corredores de shoppings que possuem o mesmo cheiro e cores. Posso comer nas mesmas franquias de restaurantes, comprar as roupas das marcas que todo mundo usa – de Paris a uma vila no Afeganistão – assistir na Netflix ou Amazon os seriados e programas que as pessoas estão assistindo em todas as cidades do mundo. Se sobrar tempo, irei às mesmas lojas de conveniência, convenientemente instaladas nas esquinas, tomarei sorvete – da mesma marca, é claro. Nada de sabores exóticos e até o Açaí do Pará vende aqui numa bodega do Bronx.
Não poderemos e nem devemos escapar dos confortos e facilidades criadas pela tecnologia e pela economia global – mas tentar, quem sabe, fugir dos roteiros óbvios, visitar lugares e pessoas que possuem culturas diferentes, provar sabores e cores nunca vividas. Dentro de mim ainda existe aquele menino ao lado da avó, sentindo o aroma das frutas da Amazônia, vestindo uma camisa feita com a fibra de alguma madeira que nunca foi vista na cidade que vivia.
Dá muito mais trabalho, mas com certeza ainda há formas de viver e viajar – sentindo a vida de todas as maneiras.
Texto Dedicado a minha amiga Nanaia que incorpora o espírito de viajar imenso, em busca de felicidade