OLHARES

 

 

Por Clementino Jr.

 

 

“Muitas vezes é a falta de caráter que decide uma partida. Não se faz literatura, política e futebol com bons sentimentos.”
Nelson Rodrigues

Ouvi de um professor de audiovisual que, quando ele trabalhava numa grande emissora, tinha que fazer, aos domingos, replay em máquinas de vídeo de formato de uma polegada — porque não tinham o recurso de câmera lenta e replay. Para isso, colocava-se a mesma cena em um rolo mais gasto. Então, um técnico, com uma toalha, segurava a fita no sentido contrário ao do playback para diminuir à força a velocidade do rolo, provocando, assim, a câmera lenta no replay de, por exemplo, um gol de Zico no Maracanã.

Na transmissão, replay em dezenas de câmera se tornou uma invasão de privacidade nos segredos do futebol e dos esportes em geral, servindo, já há alguns anos, em outros esportes para validar algo que o olho humano não consegue captar. Mas sempre a serviço do jogo.

O jogo envolve competição, palavra essa que perdeu seu sentido original — do latim competere — que significa algo como “voar juntos”. Mas, na modernidade, se torna “eu voo mais rápido que você”. Essa competição de quem voa mais “no ar” nas transmissões esportivas é, por vezes, desprovida de fairplay — algo como jogo justo. Como o replay televisivo historicamente denunciou as falhas dos árbitros das competições, começou-se a usar a tecnologia, com instrumentos modernos de precisão em alguns casos, para confrontar a visão humana de quem julga a validade de uma jogada. No caso do esporte mais popular do mundo, o futebol, o V.A.R. (Video Assistant Referee) surge no final da segunda década do século XXI, cumprindo essa função de reavaliar jogadas. O serviço, que envolve inúmeros profissionais de arbitragem e de audiovisual e tecnologia, “auxilia” o juiz para que, ao final da partida, não tenha o nome de sua progenitora maculado.

Mas acabaram-se as resenhas de segundas-feiras, onde se justificava o sucesso de um grande clube em função das seguidas interferências dos árbitros com impedimentos, pênaltis e expulsões de seus oponentesNão, mas diminuíram, pois o que se mostra no vídeo vem sendo construído ao longo de décadas como verdade, não é? Bom, acredite ou não, o V.A.R. vem, nos últimos tempos, expondo as falhas de juízes e bandeirinhas no futebol, que têm a chance de se desculparem pelo erro se acatarem o que será mostrado em seu monitor particular. E, mesmo assim, ele terá o seu julgamento diante do que o replay da jogada revelará, condicionado às habilidades do cinegrafista e das câmeras fixas.

Recentemente, episódios de racismo vêm acontecendo nos estádios, ainda sem público, em função do COVID-19. Anteriormente, torcidas hostilizavam jogadores pretos, de uma forma geral, imitando macacos e, quando isso virou punição aos clubes, as câmeras de TV buscavam esses ofensores para contribuir na identificação dos racistas. Nos campeonatos europeus, que retornaram sem público em função do COVID-19, aconteceu um desentendimento entre dois oponentes em campo. Um deles, branco, teria ofendido o outro, preto, chamando-o de macaco e mais alguns impropérios. O jogador preto, após vários momentos de bate-boca ao longo do jogo, lhe desfere um cascudo e a imagem é captada pelas câmeras do serviço. Ele ganha cartão vermelho. O jogador, então, alega que foi chamado de macaco na língua local e exige, publicamente, que verifiquem no V.A.R. o xingamento, ao que os árbitros alegam que a função do serviço não é fazer leitura labial. Isso foi feito por emissoras de TV, que pesquisaram e transcreveram as cenas do bate-boca.

O episódio é pontual diante de tantos acontecidos em estádios de futebol, mas o julgamento de imagens de crimes contra a pessoa, que não envolvam agressões explícitas, ou até quando estas estão envolvidas, depende de quem é o árbitro a analisar as imagens e os interesses envolvidos.

Se pegarmos a teoria da funcionalidade do V.A.R. e pensarmos episódios contemporâneos, onde os flagrantes de crimes são feitos por smartphones ou câmeras escondidas, câmeras de segurança ou até câmeras profissionais, por mais que sejam exibidas publicamente ou que exponham crimes, a palavra final é do árbitro, queira que o público concorde ou não. Quando falo de crime, falo, inclusive, de crimes que não foram, mas que quiseram que assim o fossem, para mudar o resultado do jogo e o título do campeonato — se pudermos chamar assim. Há uma frase machista que diz “não confie em alguém que sangra por dias, todo mês, e não morre”! Quando várias câmeras mostraram um machista levando uma fakeada e não sangrando nem morrendo, ele se tornou confiável. Se o V.A.R. fosse utilizado na avaliação neste caso, por exemplo, por um árbitro idôneo, “ele” ia para o chuveiro mais cedo e a disputa do campeonato seria jogada por outros. E o campeonato em si nunca mais foi o mesmo, e não será.

Penso que a competição deveria ser mais sobre voar juntos do que vencer uma corrida ou atingir uma maior marca em relação a terceiros. O sentido contemporâneo da competição individualiza e separa demais, torna o fairplay uma convenção. A outrora pensada “superação de limites do homem” tem mostrado que, dentro e fora do campo, não há limite para ser o representante do poder, o vitorioso. Espero que não esperemos 20 anos para analisarem a jogada e dizerem: a falta foi clara, como não viram isso na época? Talvez, o tio da birosca da esquina saiba que tinha que ser pênalti, mas provavelmente ele torcia pelo time e dirá, nesse futuro distópico:

merecia ser pênalti… mas e daí? Imagina se o outro ganhasse?