CRÔNICA
Por Vera Lúcia Gregório
Outro dia me pus a lembrar de uma grande mulher.
Não sei se mais alguém a considerava grande.
Sei que quando ela demorava um pouco a chegar para dar a primeira aula na minha turma de curso de Formação de Professores já nos inquietávamos porque ela quase nunca se atrasava, a não ser por um único motivo.
Ficávamos todas, só meninas, adolescentes de 15,16 anos, aflitas. Umas, mais impacientes, iam até a porta sorrateiramente espiar se ela estava chegando. Se a Fiscal do corredor nos pegasse em pé, fora das nossas carteiras era corretivo na certa.
Depois de uns 15 longos minutos de atraso lá vinha ela, desconcertada, constrangida, se desculpando atabalhoadamente pelo atraso, pedindo que abríssemos o livro/caderno para começarmos a aula.
Em silêncio, solidárias com ela, abaixávamos nossas cabeças e começávamos nossa aula do dia. Com ela conheci o que era diversidade, que os aluninhos que eu conheceria no estágio, um pouco adiante eram todos diferentes uns dos outros, todos únicos e que eu seria única pra eles; que alguns eram privilegiados por terem uma família e outros eram sobreviventes e resistentes e o principal aprendizado para eles era o afeto; outros eram “especiais”.
Foi a primeira professora que usou esse termo “especial”.
Assim transcorria a aula dessa grande mulher, que na verdade não devia chegar a 1,60m de altura.
Quando soava a sirene sinalizando o fim da aula dela, nós fechávamos os livros, ainda com as cabeças baixas, enquanto ela, ainda nervosa, pegava seu material e ia se retirando para outra sala.
Só então nós olhávamos abertamente para ela, já saindo da sala, procurando algum possível vestígio do atraso dela: o mancar de uma perna, um hematoma num braço, no rosto ou outra marca dolorosa (vergonhosa) de um “acidente doméstico” qualquer.
Nunca consegui entender de onde ela tirava a força e a grandeza para me deixar todas essas marcas, nada dolorosas, nada vergonhosas que tanto contribuíram para minha formação profissional e me faz considerá-la ESPECIAL.