Para esclarecer possíveis confusões, esse texto não pretende tratar, versar ou desenhar sobre as estações do ano. Puxando mais a tinta, poderíamos dizer que as diferenças naturais que vêm com o nome de estações foram batizadas por seres humanos. O que havia de natural já foi misturado sócio-historicamente na gira do homo sapiens, o que faz dos seus efeitos naturais e de suas consequências muito mais do que os seus impactos aparentemente naturais.
No entanto, quando se fala de estações do ano, mesmo sem muito conhecer, sem muito ter vivido o impacto máximo de cada uma delas ou o impacto mais profundo à biologia humana, ao menos a grande maioria já gritaria: primavera, verão, outono e inverno. Ainda que todos os vetores do senso comum sejam barreiras para o conhecimento, a consciência e a liberdade, não são barreiras para as comunicações. Todas as comunicações possuem objetivos, mesmo que não apresentados, não esclarecidas ou disfarçados no sofismo que organiza as pessoas, ainda mais nos tempos atuais. Mas, à parte isso, temos em nós “todos os sonhos do mundo”, então, vale perguntar, afinal: esse é um tempo distópico? Há o tempo distópico? Há o tempo utópico? Quem faz o tempo ser algo, tudo ou nada?
Mesmo com o impacto dos efeitos naturais que existem no mundo, como o que foi chamado de gravidade, são os seres humanos que fazem o tempo ser. Certamente que não fazem todos iguais, se esbarram em diferenças e desigualdades. E a apropriação privada e oligárquica do mais COMUM, do mais “natural”, absolutamente já desnaturalizado pela intervenção humana, indica as bases dos conflitos, confrontos e das múltiplas tensões existentes. E nesse movimento, entre outros impactos no tempo, utopias e distopias viveram conflitos múltiplos e variados. A predominância ou hegemonia de quaisquer aspectos absolutamente formados na história por humanos, nada de natural tem e não pode desenhar o tempo. Os desenhos borram em conflitos múltiplos entre as utopias e as distopias e no atrito poderoso que há no confronto dos significados no tempo empurrado pelas pessoas.
O movimento é parte da natureza. Mas os movimentos sociais são criados pelos humanos. Nas relações sociais não há apoptose, mas nos seres vivos há, naturalmente programadas, e células morrem e produzem equilíbrio dos organismos multicelulares, como o corpo dos seres humanos, por exemplo. Mas esse processo de conflitos históricos e sociais é determinado pelo movimento do poder e dos interesses: esse poder supremo, que se apropria da natureza e de todas as coisas ou seres que poderiam ser organizados para movimentar a execução e ampliação da potência humana criativa. Há, portanto, muitos desafios que são colocados para os seres humanos que se reconhecem como sujeitos vivos para realização de uma “apoptose” nada natural em defesa da vida. Eis o desafio do tempo utópico, no presente, na vida, materialmente e simbolicamente, para esses seres humanos em toda cronologia do existir. Pois não existe um tempo distópico ou utópico; no tempo há. E todo o resto é a ação dos humanos na história, sob as condições concretas da vida em sociedade e construídas pela humanidade. Nesse sentido, a ideologia que sustenta uma naturalização ou desumanização das épocas históricas querem atribuir ao tempo uma qualidade humana: não é o tempo que nos organiza, somos nós que organizamos o tempo, sob determinadas condições. Portanto somos nós que agimos na história para mudá-la a nosso favor ou contra nós. Atribuir aos tempos atuais qualidades significa naturalizar o que é social e histórico e, com isso, destituir o poder que nós temos em mudar o curso da história. Fetichizar o tempo é um movimento conservador: atribui ao tempo uma divindade sob a qual nos curvamos, resignamos e obedecemos. Dizer por aí que estamos num tempo distópico ou que estamos submetidos ao movimento cíclico do tempo histórico, nada mais é do que retirar de nós mesmos as condições para agir concretamente na história e disputar o rumo de seu curso. É o mesmo que atribuir ao novo coronavírus a responsabilidade pela crise sanitária e pelas milhares de mortes, ao invés de reconhecer a sua gênese histórica e humana – pelo modo como lidamos com a Natureza, os animais e o meio ambiente – e, sobretudo, a natureza política da crise.
Assim, o tempo utópico deve ser organizado pelas pessoas que querem mudanças no domínio estrutural e superestrutural do poder, ele não explodirá em sínteses naturais. E nessa mesma organização de pensamentos e ações não há o tempo distópico. Há a distopia imposta por quem está no poder ou mesmo por quem, mesmo fora do poder, vive as ideologias do sofismo destrutivo em relação à vida. Assim, fica mais fácil se emprenhar no romantismo necessário para comprar, se isolar, se distanciar do que em ações revolucionárias coletivas que são impulsos para que a criação obstruída abra frestas de presença no mundo. Em outras palavras, não existe o tempo distópico: a ideologia distópica é criada por seres humanos e, mesmo quando incomoda outros humanos, se não há movimentos utópicos em favor da vida plena, a morte das células predomina nas pessoas sem quaisquer movimentos naturais para manter equilíbrios. Muito pelo contrário, o que predomina em quaisquer versões das distopias, das mais românticas, emocionantes ou desastrosas, são movimentos que reforçam a opressão e a exploração. Afinal, são esses os movimentos que predominam no mundo capitalista.
Eis, portanto, um grande desafio do nosso tempo: construir utopias que unifiquem pessoas diferentes para superar, com as múltiplas singularidades construídas, o que é imposto pelas pessoas que dominam o poder, mas não dominam o tempo. Somos nós os sujeitos do nosso tempo, sabendo ou não, querendo ou não, desejando ou não, somos sujeitos do nosso tempo, cada um de nós, humanas e humanos. E mais forte somos com a inteligência coletiva que multiplica as células do pensar e do fazer em defesa da vida. Eis o grande movimento utópico do nosso tempo.
Fazer com que a utopia supere a distopia nos coloca desafios com o conhecimento, com a coletividade, na mais profunda e coletiva convivência entre os não desiguais. Seja qual for a distopia desenhada, seja pelo desejo de retorno ao passado – que não haverá -, com todo o romantismo, seja pelas práticas e ideias mais violentas que adquirem estatuto primordial nas estéticas das guerras, seja pelas influências de sentimentos e sensações associadas a localizações anômalas de órgãos, seja pela afetação emocional, psíquica, estética e fundamentalmente escatológica da ideologia, não será ela que sustentará o motor da mudança que queremos. Ao contrário, será a construção de um tempo utópico, substancialmente unificado, compassivo e atuante que nos levará aos princípios necessários para esta mudança. E seja como for, não é a paz que nos clama. O que nos clama em nossa utopia é a mais ampla formação e ação coletivas que superem as barreiras, para que a inteligência coletiva e a potência humana criativa possam vibrar na humanidade. Cabe a nós, que só temos a força de trabalho para sobreviver e que alcançamos como sujeitos a gira da revolução em favor da vida, criar a mais fecunda estrada para a humanidade em humanização ampla, digna e profunda. Vamos criar o tempo da UTOPIA.