Por Raquel Torres
Bolsonaro e Pazuello apresentam hoje “roteiro” patético que não tem data para começar, nem vacinas adquiridas, nem seringas disponíveis. País volta a ter mais de 900 mortes diárias. E mais: as mentiras do ministério da Saúde sobre a maconha.
Dito e desfeito
Jair Bolsonaro já havia dito, por alto, que pretendia estabelecer um termo de consentimento a ser assinado por quem quisesse tomar alguma vacina contra a Covid-19 no Brasil. Ontem ele se reuniu com Geninho Zuliani (DEM-SP), relator da Medida Provisória que autoriza o ingresso do país na Covax Facility (ela já foi editada, mas ainda falta ser votada pelo Congresso). Pouco depois, Zuliani disse à imprensa que seu relatório da MP iria incluir a previsão do tal termo. Ele serviria para qualquer imunizante aprovado contra o coronavírus: seja com registro final ou aprovação emergencial, seja adquirido pela Covax diretamente das farmacêuticas. “O presidente quer repassar isso de forma segura, clara, transparente a todos que receberão a vacina”, disse o deputado, completando: “Não dá para a União assumir esse passivo ao longo das próximas décadas de tudo aquilo que uma vacina pode trazer de efeito colateral”.
“A população pode achar que está participando de um estudo, e não de uma vacinação.”
Na prática, trata-se de mais uma peça da campanha antivacinação do presidente Bolsonaro. “Termo de consentimento se faz em pesquisa clínica, quando ainda não se sabe totalmente quais os eventos adversos que podem acontecer. Mas quando é um medicamento é aprovado pela Anvisa, significa que já tem anuência de que aquele produto é seguro. Então não existe necessidade de isso ser colocado. Isso é impraticável de ser colocado. (…) “A população pode achar que está participando de um estudo, e não de uma vacinação. É inviável fazer uma campanha de vacinação com isso”, enfatiza na Folha a epidemiologista Carla Rodrigues, ex-coordenadora do Programa Nacional de Imunizações. A reportagem lembra que o Guia da Anvisa sobre as aprovações emergenciais já previa a possibilidade de incluir um termo de consentimento.
Não demorou muito para o próprio Zuliani voltar atrás. Ao repórter da GloboNews Nilson Klava, ele disse que não colocaria mais o termo na MP. Logo em seguida, o presidente da Câmara Rodrigo Maia foi taxativo ao afirmar que o Congresso não acataria a exigência de Bolsonaro: “O relator não vai incluir esse retrocesso na MP. Que seja incluído por emenda do governo, não por um partido da presidência da Câmara. O governo que tente ganhar no Plenário“. Maia quer votar a MP nesta quinta-feira.
Em tempo: também ontem, Bolsonaro disse na TV que não vai se imunizar. “Eu não vou tomar vacina e ponto final. Minha vida está em risco? O problema é meu”, afirmou ao apresentador Datena, no programa da Band Brasil Urgente. Não custa lembrar os últimos números do Datafolha mostrando que, desde agosto, o percentual de brasileiros que não querem se vacinar subiu de 9% para 22%. Esse tipo de hesitação, um gravíssimo problema em vários países europeus e nos EUA, não era uma realidade no Brasil há décadas.
Lançamento Atabalhoado
O governo federal decidiu lançar hoje, às 10h, o Plano Nacional de Imunização contra a covid-19. O convite foi enviado a governadores ontem, em cima da hora. Segundo o Painel da Folha, eles foram surpreendidos: antes havia apenas a expectativa de que o ministro da Saúde Eduardo Pazuello recebesse, à tarde, um pequeno grupo deles para conversar.
Em resposta ao STF, que exigiu a definição de prazos para a vacinação, o governo informou que os imunizantes vão começar a ser distribuídos a estados e municípios até cinco dias após o aval da Anvisa. Sua estimativa para o término da campanha é a seguinte: quatro meses para cobrir todos os grupos prioritários e mais um ano para o resto da população. É uma previsão otimista, considerando que o governo só dá como “garantidas” 300 milhões de doses (que, como dissemos por aqui, nem estão mesmo garantidas…), suficientes portanto para atingir 70% da população, a depender do regime de doses. Por ora, o cálculo segue ignorando a CoronaVac.
Inclui, porém, a da Pfizer. Como se sabe, o Programa Nacional de Imunização não conta com ultracongeladores e o governo federal não se mexeu para comprá-los. A boa notícia é que, em laboratórios de universidades, há unidades que podem ser utilizadas, diz a Folha. A má é que ainda não fazemos ideia de quantos existem no total, onde estão eles e quantos poderiam ser disponibilizados para armazenar essa vacina. E o governo também não parece interessado em saber. Neste momento, vem dos cientistas um pedido para que o ministério da Ciência organize oficialmente este mapeamento, mas não há nada concreto.
Assista ao lançamento do “Plano”.
É preciso ainda insistir em falar do risco real de que faltem seringas. O governo fala na compra de 300 milhões de unidades, mas até agora não disse quando nem de quem. Na Folha, o repórter Vinicius Sassine alerta que o Ministério da Saúde ignora há nada menos que seis meses um pedido para que se manifeste sobre o interesse público na importação de seringas da China. Em junho, um ofício foi enviado a Pazuello pelo Ministério da Economia, mas ainda está sem resposta.
“o plano brasileiro de vacinação contra a covid-19 está mergulhado no caos”
A confusão brasileira é tanta, que virou destaque no New York Times. “‘Brincando com vidas‘: o plano brasileiro de vacinação contra a covid-19 está mergulhado no caos”, diz a manchete da reportagem, traduzida pelo Estadão. Além de criminosa pelos seus efeitos, a condução do governo federal é uma baita vergonha para um país cujo programa de imunização é dos mais respeitados do mundo.
Pronta para aprovação
A vacina da Moderna (que não está no radar brasileiro) está prestes a ser aprovada para uso emergencial nos Estados Unidos. A FDA, agência reguladora do país, liberou ontem os dados completos enviados pela farmacêutica e sua própria análise independente das informações. Ela confirma a eficácia de 94% na prevenção de infecções sintomáticas, sem diferenças entre participantes de diferentes idades, etnias e gênero. Como aconteceu com a Pfizer, um painel externo de especialistas vai fazer mais uma avaliação na quinta-feira e tudo indica que a FDA deve autorizar o imunizante no dia seguinte. As primeiras doses podem começar a ser distribuídas na semana que vem.
Uma observação importante é em relação aos casos assintomáticos. Foi feita uma avaliação preliminar, com testes em um número pequeno de pessoas sem sintomas. Foram encontrados, após a segunda dose, 14 infectados no grupo da vacina e 38 no grupo placebo. Isso pode indicar que essa vacina ajuda a conter a transmissão, mas os números não são conclusivos.
Houve mais reações adversas do que nos testes com a vacina da Pfizer. Com a da Moderna, a maioria dos voluntários teve algum tipo de reação (como fadiga e dor muscular), mas em geral elas duraram apenas um dia e não são realmente uma fonte de preocupação. Um efeito que também apareceu nos estudos da Pfizer foi a paralisia de Bell, uma fraqueza temporária nos músculos do rosto. Com a Pfizer, houve quatro casos no grupo que recebeu a vacina e nenhum no que recebeu o placebo; na Moderna, foram três no grupo da vacina e um no do placebo. Os casos continuarão sendo rastreados, mas a FDA acredita que não há evidências de que os imunizantes foram a causa do problema. A cada ano, 40 mil casos desse distúrbio são identificados nos EUA, e anos de pesquisa nunca encontraram nenhuma ligação entre ele e qualquer vacina administrada, diz o New York Times.
A propósito: diante do descontentamento de vários países com sua demora, a EMA (reguladora europeia) antecipou a reunião em que vai avaliar se autoriza a vacina da Pfizer. Em vez do dia 29 de dezembro, o encontro vai ser no dia 21.
Ainda na tentativa
Chamamos sempre a atenção para a distribuição desigual das vacinas no mundo. Uma nova análise, publicada ontem no British Medical Journal, mostra que um quarto da população mundial não deve ser imunizada pelo menos até 2022. Obviamente isso varia. Alguns países garantiram doses para imunizar várias vezes sua população; outros só tem o suficiente para 10% ou 20%. Apenas seis fabricantes que desenvolvem vacinas candidatas chegaram a algum acordo para vender seus produtos a países de média e baixa renda.
Por enquanto, só nações ricas conseguiram comprar as vacinas de RNA mensageiro, da Pfizer e da Moderna. Bruce Aylward, consultor sênior da OMS, disse ontem que a organização está negociando com essas empresas para que elas integrem a Covax Facility, o consórcio global que busca resolver o problema por meio do próprio mercado. De acordo com Aylward, houve um “forte compromisso” da Pfizer em baixar os preços para países mais pobres. Ele afirmou ainda que espera que mais fabricantes se juntem à lista de fornecedores da Covax nas próximas semanas. A ver. De todo modo, a iniciativa só arrecadou US$ 2 dos US$ 7 bilhões necessários para conseguir vacinar dois bilhões de pessoas no ano que vem.
Carteira digital
O Senado aprovou ontem um projeto de lei que cria a carteira digital de vacinação e um sistema de rastreamento sob responsabilidade do Programa Nacional de Imunizações. A carteira deve ter “a identificação do portador, as vacinas e os soros aplicados e pendentes, os fabricantes e lotes das vacinas e dos soros utilizados, os eventuais efeitos colaterais identificados e outras informações estabelecidas em regulamento”. A votação foi simbólica; vai tramitar na Câmara antes de partir para a sanção de Bolsonaro.
Acima de 900
O Brasil voltou a registrar mais de 900 mortes em um único dia: foram 915. Da última vez em que isso aconteceu, no dia 12 de novembro, não era um número confiável – isso foi logo depois do represamento gerado pelo ataque hacker ao Ministério da Saúde, de modo que deve ter sido efeito da liberação de dados antigos. Antes, um número tão alto assim não era visto desde 16 de outubro.
É verdade que nas terças-feiras o número tende a ser mais alto, porque há a inclusão tardia de mortos comunicados no fim de semana. Mas a média dos últimos sete dias cresce inequivocamente. Ficou em 677 ontem, representando um aumento de 27% em relação a 14 dias atrás. Desde o dia 7, essa média está acima de 600. Como lembra a Folha, isso não acontecia desde o começo de outubro.
Em letras garrafais
Os ministérios da Cidadania e da Mulher, Família e Direitos Humanos publicaram uma cartilha sobre os riscos do uso da maconha. Vindo de onde vem, não se poderia esperar um documento recheado de informações confiáveis, mas ele consegue superar as expectativas. Diz que “NÃO existe ‘maconha medicinal’” , com este ‘não’ assim mesmo, em letras garrafais, em destaque em um ‘box’ verde. Faz também alegações sem referências que as sustentem, como a de que houve aumento da “homicídios, criminalidade e violência” nos locais onde a substância foi legalizada.
Ao contrário da cartilha, a reportagem da Folha elenca uma série de evidências que já existem tanto sobre o potencial quanto sobre riscos do uso dessa droga. E também resume o deprimente evento online de apresentação do documento: “O que está atrás da maconha é o utilitarismo, não é o uso terapêutico. É como eu ganho dinheiro com o narcotráfico“, afirmou Angela Gandra, secretária Nacional da Família. Quirino Cordeiro, secretário Nacional de Cuidados e Prevenção às Drogas do Ministério da Cidadania, fez uma fala já corriqueira, argumentando que a aprovação da cannabis medicinal é o primeiro “passo” de um grande plano para chegar à liberação do uso recreativo…