CRÔNICA
Por Marco Dacosta
O pequeno Jeff, um Yorkshire terrier desapareceu após virar em um quarteirão onde todas as casas pareciam iguais. Meu corpo estava tomado por um frio, maior e mais intenso do que fazia naquela manhã em Londres, por que perder um cachorro da família seria um absurdo e arruinaria meu intercâmbio. Mas como cheguei a essa encruzilhada atrás de um cachorro, do outro lado do continente? Como conheci Jeff?
Eu explico.
O caminho até Schubert Road em East Putney não foi fácil. Cheguei a noite, três horas além do previsto. A família Harley estava na sala, como em “guarda”, em posição de sentido, até a minha chegada. Eu era mais um estudante do programa de uma escola e eles, a família anfitriã. A ideia era tomar o café da manhã, juntos, e que a imersão fosse completa. Lá estavam os filhos Peter e Thomas e os pais, Juliet e James, extremamente protocolares, mas muito amáveis. Na verdade o pequeno Jeff foi o menos formal, pulando em meu colo assim que sentei no sofá, exausto após um voo longo que vinha do Rio com escala em Nova York. Foram mais de 18 horas de voo e até encontrar a rua, na escuridão, naquele novembro de 1998, foi uma eternidade.
Oferecer para caminhar com Jeff nos fins de semana foi um gesto quase automático, de gentileza. Era uma desculpa para conhecer a vizinhança, observar as pessoas. A velhinha da lavanderia falava rápido e não entendia nada. Com os ouvidos treinados pelo inglês norte-americano, anos antes, foi difícil me adaptar ao Cockney do leste londrino, cheio de sons chiados e rimas. Só Jeff parecia me entender naqueles tempos, e ele se tornou minha melhor companhia naquela casa. Juliet entendeu isso e deixou que o cachorro da família frequentasse o segundo andar, onde estava meu quarto. Ele descia comigo pontualmente às sete da manhã, até a cozinha, onde todos estavam em uma grande mesa – os meninos antes de que o ônibus escolar viesse buscá-los e antes de Juliet ir para seu escritório. James era corretor de imóveis e tinha o horário mais flexível.
O gosto do suco de laranja foi o maior contraste. Nunca havia comido pão integral – na época também uma raridade no Brasil. O café da manhã era o momento de perguntar coisas com o mapa aberto sobre a mesa. Onde não devo ir? Quais os lugares que a família me indica? Foram sempre manhãs de grandes dicas e como já estavam treinados com outros hóspedes anteriores, parecia tudo muito automatizado.
Mas e o Jeff – calma que eu chego lá.
Me apresentei na escola no dia seguinte. A Frances King School ficava próxima a Oxford Street, no coração de Londres, próxima a uma saída de metrô. Na época, e-mails eram raros e inacessíveis e por isso a escola provia uma caixa na entrada com todas as mensagens enviadas para nós, estudantes. Assim que cheguei recebi uma mensagem da minha colega de trabalho, no Rio, Carla Andrade. Estávamos ainda ligados no IRC, uma rede de usuários para conversas e que havia apresentado a ela alguns meses antes. Carla me relatou seus encontros virtuais e conversas impublicáveis. Era uma época de experiências virtuais fora de nossos corpos, quando pela primeira vez o teclado substituia nossos movimentos e prazer. Antes da realidade virtual, conhecíamos a realidade de nossos dedos em busca das palavras que iriam nos despertar tesão e excitação. A precária internet caia as vezes no meio da conversa, interrompendo nossos sentidos. O ronco do modem tentando conectar era como se estivéssemos à beira do orgasmo esperando o toque final.
Onde eu estava mesmo ?
A Escola tinha três andares e um porão com cantina e sala de jogos. Era um lugar ideal para estudar e fazer amizades, nas mesas amplas de madeira com banquinhos espalhados por todo lugar. Adorava pegar aqueles jornais com folhas imensas, deitá-los sobre a mesa e desfolhar em busca de novidades. Assim foi toda a semana, uma rotina militar, manhãs com a família, tarde na escola e início da noite circulando pela Oxford.
Jeff entra na história naquele primeiro fim de semana. A ideia era ir até a lavanderia e enquanto a roupa estaria na máquina e levar o cachorro para passear no quarteirão, economizando tempo para Juliet, que naquele dia estava preparando um bolo para um chá da tarde com amigas. Tudo aconteceu perfeitamente como planejado. Só Jeff não colaborou.
Assim que coloquei as roupas na máquina amarrei a cordinha da coleira no pé de uma cadeira. Fui até a máquina, peguei o sabão em pó e quando voltei, Jeff havia desaparecido. Sai correndo até a porta e lá estava ele na esquina, olhando os carros passarem. Nesse momento meu corpo foi tomado por calafrios. Gritei seu nome como fazem as mães do subúrbio do Rio nos portões, ao chamarem seus filhos que jogavam bola. Gritei até perder o ar – e quanto mais gritava, mais Jeff corria. Até em uma esquina, sumiu de vez.
Andei por mais de uma hora naquelas ruas de casas iguais, fui até alguns bares, perguntei e me foi dito por vários que alguém deveria ter colocado o cachorro para dentro, ou levado em um carro. Eu não sabia como iria voltar sem Jeff, com a roupa molhada pingando. Eu nem tinha decorado os nomes da família, meu inglês parecia engasgado. O telefone celular seria popularizado somente anos após e por isso ninguém tinha para poder me ajudar ou me comunicar com a casa. Voltei como um zumbi, arrastando um saco plástico com as roupas, sem tempo para secá-las. Juliet parecia feliz na janela tomando chá com as amigas. Passei lentamente na grande janela da sala antes de entrar, tentando adiar o anúncio da tragédia.
Juliet me olhou com a coleira pendurada na mão, deixou a xícara repousar lentamente na mesa – era de uma classe inacreditável, mesmo diante de uma situação de desespero. Ela saiu da sala, pediu licença às visitas e foi ao meu encontro.
- De novo? Desculpa, não te avisei. Ele é terrível e sempre foge. Mas não se preocupe, todos os vizinhos já o conhecem.
Respirei aliviado.
As horas se passaram e ninguém veio devolvê-lo. Juliete ficou preocupada quando as crianças chegaram e não estava Jeff lá como todo dia. Quase não dormi direito e o café da manhã aconteceu sem a minha presença. Perdi a hora e passei o dia todo na escola pensando em como fazer para compensar a família – um cachorro como aquele provavelmente custava em Libras, mais do que meu salário anual em Reais. A perda de Jeff poderia marcar meu intercâmbio como uma experiência desastrosa e minha viagem a Londres, tão sonhada poderia ficar para sempre como algo negativo em minha vida. Os serviços de atenção à perda e fuga de animais da polícia foram ativados, mas os dias passavam sem solução para o caso.
Era sábado novamente e eu precisava lavar roupa. Assim que cheguei à lavanderia, cinco quarteirões da Schubert Road, Jeff estava no colo da velhinha que vendia as fichas, sendo acariciado. Sem entender bem, parece que ela me dizia “O senhor deixou esse cachorro aqui mas não sabia quem era e onde morava” – Eu com as mãos tremendo levei Jeff ao rosto e celebrei com dezenas de lambidas em meu queixo.
A cena da perda de Jeff ficou para sempre no rol das histórias que contava a todos na volta. Não foi a família inglesa, nem as tardes em Bloomsbury ou mesmo a escola e suas escadas clássicas e oponentes. Londres era a cidade de Jeff, o fujão, da senhorinha que não consegui entender, dos Pubs esfumaçados que evitava entrar, das tardes em King ‘s Cross e Russell Square. Toda majestade que eu imaginava em Londres jamais foi vivida, em troca experimentei os ruídos do trem, o olhar atento as casas feitas em série nos tempos da revolução industrial, os produtos mais baratos antes de vencer a validade nos mercados, o cheiro de incenso das lojinhas indianas e paquistanesas. Jeff, ao me fazer correr pelas ruas de East Putney e me obrigar a conversar com as pessoas – quebrou minha timidez e medo do desconhecido, me obrigando a falar e escutar a língua inglesa como nunca.
Só voltei a Londres vinte anos depois – a escola não está mais lá e perdi contato com a família que me hospedou naquela época. A última notícia foi quando os filhos se formaram e saíram de casa. Minha passagem pela cidade não me deu tempo de ir a East Putney para visitá-los, mas com certeza Jeff – assim como Fred, o Poodle da minha mãe hoje apenas existem na minha memória, guardados por histórias e casos inesquecíveis de amizades e carinho.
Quando as vezes solto uma palavra com sotaque britânico – o que é raro para quem vive em Nova Iorque – não atribuo as tardes no Frances King. Quem soltou minha língua e incorporou Londres nas minhas memórias foi a busca pelo Jeff nas ruas de East Putney, desafiando o Cockney, todos os sotaques possíveis, de uma cidade invisível aos turistas, mas que existe em cada esquina, com suas cores e sinais de diversidade.