Ao oferecer sua Retrospectiva 2020, Outras Palavras convida a refletir sobre um tempo em que se tornam nítidos tanto a brutalidade do capitalismo quanto seus muitos pontos vulneráveis.
Na última fase de vida, Immanuel Wallerstein, um dos grandes sociólogos e pensadores políticos do pós-II Guerra, examinou em profundidade a crise do capitalismo. Soube fazê-lo sem falsas esperanças. Argumentou que o sistema-mundo cuja hegemonia começou a se estabelecer há cinco séculos não sobreviveria a suas próprias contradições. Mas alertou que nada estava decidido. Viveríamos décadas de instabilidade intensa e crescente. E o que viria, ao final, era incerto. Havia espaço tanto para um sistema muito mais democrático e igualitário quanto para seu oposto.
É impossível não recordar de Wallerstein ao preparar a retrospectiva que, mais uma vez, compartilhamos com nossos leitores. Ao longo de 2020, os agouros de um grande retrocesso histórico voejaram mais próximos que antes. Alguns dos textos que selecionamos aludem a tais sombras. Pandemia. Fascismo. Desigualdade e empobrecimento. Devastação do planeta. Mas de nosso ponto de vista, lembrar estas tendências – reais – não deve ser exercício de mortificação diante dos maus tempos. Inclusive porque emergiram, simultaneamente, dois tipos de contra-tendências.
Neoliberalismo, ultradireita e milícias
Primeiro: as lutas sociais e a investigação teórica deram passos importantes, no esforço para decifrar o que nos ameaça. Agora enxergamos claramente que fenômenos como Bolsonaro ou Trump são fruto de uma aliança particular entre os punhos de renda do neoliberalismo e da aristocracia financeira e as mãos manchadas de sangue da ultradireita e suas milícias – armadas ou virtuais. Expor esta coalizão foi e será cada vez mais constrangedor para as duas alas que a compõem, como demonstram, por exemplo, os dissensos entre o bolsonarismo e a direita tradicional no Brasil. Num outro terreno, vai ficando claro que a desigualdade, o empobrecimento das maiorias ou fim da pequena empresa e da classe média não são fenômenos “naturais”. E se tais feitos derivam das políticas que favorecem, há quarenta anos, o capital improdutivo, então políticas opostas podem revertê-los.
Venenos para o capital: cuidado, compartilhamento, colaboração e comum
Segundo – e ainda mais relevante: despontaram, mesmo em meio à reconstrução ainda embrionária de um projeto pós-capitalista, mobilizações sociais potentes e em certo sentido inéditas. O Black Lives Matter, suas marchas infindáveis e a participação eleitoral incomum da juventude norte-americana derrotaram Trump – um fato em si mesmo gigantesco – e mostraram que o sistema é vulnerável mesmo em seu núcleo. A América Latina voltou a arder, com a derrota humilhante, na Bolívia, do golpe patrocinado por Washington (e Brasília); os preparativos, no Chile, para uma Constituinte que promete desafiar ao mesmo tempo a herança de Pinochet e o neoliberalismo; a recente sublevação no Peru. O novo despertar das lutas feministas prosseguiu e agora parece ainda mais portador de lógicas que são veneno para o capital: o Cuidado, o Compartilhamento, a Colaboração e o Comum.
Não desvie o olhar
“Olhar nos olhos de nossa tragédia é meio caminho andado para derrotá-la”, disse uma vez o dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho.
Não temos ilusões: o futuro está em aberto; nada está decidido, sabemos. Mas, em meio a uma crise civilizatória de cujo desfecho pode depender a sorte do planeta, não descansaremos, até o apito final.
Agradecemos pela companhia. Ótima virada. Os melhores afetos, em 2021.