CRÔNICA
Josué era perfeito para fazer o papel de Jesus em uma peça de Natal – pensei. Olhos amendoados, cabelos castanhos aloirados nas pontas, caindo até o ombro. Tinha uma barba cheia, sem nenhuma falha. Cristo, branco e ocidental, das fotos na sala da casa da avó, e também em nossa igreja católica do bairro.
Mas por que eu pensei isso? Era quase Natal, 1986, e eu estava num grupo teatral, ainda no ensino médio, numa escola de Marechal Hermes, subúrbio do Rio. Vivia não muito distante dali, em uma casa simples, de fundos, algumas estações de trem antes em direção a Central, no bairro de Oswaldo Cruz. Lá, nas proximidades da Portela, onde o carnaval era o teatro mais genial, sonhava em escrever livros e frequentava nos fins de semana uma pequena e modesta igreja católica. Uma juventude sem muitas felicidades, driblava o tédio com músicas, brincadeiras de rua e a fascinação pelos filmes da sessão da tarde. A escola me abriu a possibilidade de conhecer o teatro – e isso mudou minha vida, começando naquele Natal de 1986.
Descobri naquele fim de ano que a paróquia de São Mateus tinha um espaço enorme nos fundos, salas que serviriam para sediar nosso grupo de teatro escolar – a Cia Teatral Liberdade estava sem lugar para ensaiar depois que uma enchente de verão havia destruído nosso ginásio.
No caminho para conseguir esse novo espaço havia um desafio. Segundo o padre Fernando, pároco local, a decisão de ceder o espaço não era somente dele, mas de um conselho formado por vários paroquianos – e me alertou: “Você sabe que sou bastante progressista, mas esse grupo paroquial é bem conservador. Não faça muitas estrepolias – respeite a igreja em suas peças ou eles não vão aprovar a cessão do lugar. Nos apresente alguma obra!” Assegurei ao padre que não haveria política ou sexo em nossas montagens – na verdade adiantei que desde o ano anterior estávamos ensaiando uma peça cristã. Padre Fernando respirou aliviado.
Eu acreditava que o trunfo para conquistar a simpatia da igreja na época era resgatar a peça “Conflito de Forças”, escrita pelo colega de turma, meu xará, Marco Ferreira. A peça havia sido encenada na escola um ano antes, sem muito sucesso. Foi por causa dos animados atores da Cia. Liberdade que passei a frequentar os ensaios abertos. Era uma explosão de alegria e irreverência. Por causa daqueles dias, conheci uma nova família, o amor e enfrentei as primeiras tragédias da vida.
O texto da peça que vi ensaiarem cairia como luva para uma aproximação com a igreja. Cheio de simbolismos religiosos, o musical era baseado em um conflito em que cada personagem representava uma manifestação humana: felicidade, alegria, solidariedade e amor lutando contra outras que simbolizavam ódio, rancor, egoísmo e preconceito.
Em “Conflito de forças” personagens duelavam em palavras e danças até que a figura de Jesus Cristo surgia de uma névoa de amor e restaurava a união em um só corpo, fazendo com que as forças positivas dominassem as negativas. O amor de Cristo venceria o mal.
Toda a coreografia e inspiração da peça vinha do trabalho de Oswaldo Montenegro, criador da “Dança dos signos”, lançada pelo compositor anos antes, em 1982. Foi pensando em Oswaldo, seu grande amor platônico, que Marco Ferreira quase plagiou seu trabalho – criando uma peça muito similar e trocando os signos por sentimentos. Ele assumia a devoção por Montenegro e dançava no palco cantarolando as suas letras mais poéticas: “Como, sem licença, o sol…Rompe a barra da noite. Sem pedir perdão! Hoje quem não cantaria. Grita a poesia…E bate o pé no chão!” Era puro amor.
Pensei novamente em Josué e no elenco. “Ele era fisicamente muito parecido à imagem de cristo nas pinturas da igreja”, repetia na minha mente, aguardando a reunião do grupo para insistir na substituição do ator. Na peça na escola, um outro estudante fazia o papel, mas não tinha nenhuma semelhança, era careca e cheio de tatuagens. Isso – pensei – isso seria um problema com os tais conservadores da igreja.
Aproximei-me do grupo no começo do ano para me livrar da solidão e isolamento na escola. Era a única atividade extra curricular. A companhia teatral foi batizada como “liberdade” e atraia os mais loucos e apaixonados da turma da tarde. Fugíamos das aulas chatas para decorar textos e músicas. Em poucos meses eles haviam revirado a minha rotina.
Miriam, Josué, Suely, Arnaldo, todos do teatro vivíamos em torno de Marco Ferreira como abelhas em busca de algum mel. Um cara encantador, capaz de nos convencer a segui-lo para os mais distante dos lugares com sua arte e talento.
E fomos naquele ano, como mambembes, circulando pelas praças, trens, cantando “Coração de Estudante”, de Milton Nascimento, acompanhando aquela revolução que era o fim da ditadura militar. Havia uma efervescência nas escolas e faculdades, grupos se formavam em células para duelar politicamente. Também nasciam novos grupos de teatro, música, bandas de rock e varais de poesia rebelde, encenando e provocando em todos os lugares. Queríamos explorar nossos corpos, sentidos, falar palavrão, tudo que o regime militar havia nos impedido de fazer e expressar. O fim da ditadura era um pulverizador de emoções e desejos. Por isso precisávamos tanto do nosso grupo teatral porque era o espaço que tínhamos para expressar nossas alegrias e angústias.
Começou enfim a reunião decisiva e minha primeira tentativa de me entrosar. Eu havia conseguido um novo espaço para a companhia e queria ser útil naquele momento em que o grupo estava sem poder ensaiar. Fiz a proposta da nova montagem e descrevi a igreja como um espaço que nos garantiria um futuro melhor. Para completar lancei Josué como um Cristo ideal. Só esqueci de um detalhe – seria blasfêmia um Cristo … gay?
Suely, que interpretava o personagem “egoísmo”, na peça, me lembrou que Josué seria uma escolha muito arriscada para uma nova montagem – Ele parece Jesus mas é muito viado e maconheiro. Aliás, aqui no grupo, metade é gay e fuma maconha, como é que vamos ensaiar numa igreja?”
Josué se levantou com semblante indignado com o comentário e caminhou lentamente saindo do círculo que estava formado com todos nós, sentados em uma praça. Pé ante pé, como se estivesse de salto alto, chegou ao meio do círculo e gritou: “Eu sou viado e quase travesti, mas não sou maconheira, tá boa”.
– Sim, mas é também bêbada, disse o diretor, interrompendo a performance. Marco sorria e parecia gostar da ideia mesmo com as brincadeiras iniciais.
Todos riram da minha proposta inicialmente, mas lembrei ao grupo que era um desafio profissional apresentar uma peça para um grande público católico. Atores de verdade – disse – podem encenar qualquer papel sem que seus trejeitos pessoais fossem notados. Conter a “ pinta” e segurar o uso do baseado. Tudo era possível, se fossem realmente bons atores.
Ferreira gostou do desafio. Também sabia que a sobrevivência do grupo dependia em achar um lugar fechado para ensaiar. As praças com as chuvas de verão seriam inviáveis ao longo prazo. Tínhamos planos gigantes mas pouquíssimos recursos.
Miriam e Arnaldo aceitaram de imediato a minha proposta da nova montagem. Suely era uma espécie de coordenadora de elenco e olhava torto para o possível Jesus, não acreditando que fosse possível ele se controlar. Josué nos garantiu que faria abstinência da erva ou álcool e que seria um Cristo perfeito e bem comportado. As apostas foram lançadas. Minha proposta foi aceita e partimos entusiasmados para a montagem e para conquistar nossa sede de ensaios e produções. Seria a primeira vez que sairíamos do circuito escolar e passaríamos para um público mais amplo e diverso.
Dias depois, no primeiro ensaio, Josué conseguiu dar alguns passos firmes, mas, na metade, rebolou até o final e ainda jogou o cabelo para o lado como se estivesse no comercial das perucas “lady” – propaganda muito famosa na época em que uma atriz balançava sua peruca mostrando flexibilidade e brilho natural.
– Calma gente, tô pegando a personagem.
Ferreira interrompeu o ensaio e ressaltou a responsabilidade do grupo: “O personagem é Jesus Cristo e a audiência, um monte de idosos de uma igreja, tem que ser tudo com muito respeito”, disse, olhando pra mim e fazendo o sinal de “legal” com o dedo.
Vamos conseguir!
No ensaio Suely arrastava uma corrente metálica enorme, de seu personagem – o egoísmo – e seguia me olhando com cara de quem tinha avisado que não daria certo. Em um intervalo se aproximou e me disse:
“Olha, Josué é o cara mais viado que já conheci e olha que sou a rainha gay de Marechal” – Isso não vai dar certo!
Nos anos 80 ainda era pouco comum no subúrbio a demonstração pública de afeto ou afetação entre jovens gays. Tudo estava muito escondido, com sabor de subversão para quem fosse óbvio, como Josué. Era uma postura política para ele ser feminino de barba e traços físicos masculinos. Para nós, aquilo soava como algo que não combinava: uma cara de homem com voz e trejeitos de mulher.
Dias antes da estreia, resolvi procurar nosso Jesus para garantir que ele cumpriria a promessa de abstinência. Peguei o trem e fui até sua casa em Anchieta. Ele vivia nos fundos de um terreno bem grande e eu tive que gritar seu nome no portão para que escutassem. De repente, Josué apareceu na varanda aparentemente sóbrio, mas veio em minha direção jogando os cabelos.
– Não se preocupe, estou quase no ponto.
Olhei incrédulo. “Mas e a fala, decorou?”, perguntei
Josué se afastou, abaixou o corpo se ajoelhando e levantou lentamente a cabeça enquanto seus cabelos se abriram mostrando seus olhos:
“O que fazes aqui? Quem são vocês senão forças em conflito”? Disse, bem forte, com voz grossa e convincente.
Saí de lá certo que conseguiríamos fazer uma peça sobre Cristo, na qual metade dos personagens seriam crucificados pela audiência.
“Estão todos prontos?”, perguntou Ferreira nos bastidores, no dia da estreia.
“Josué ainda não chegou”, alguém me sussurrou no ouvido. Suely entrou pela porta do camarim esbaforida. “Gente, Josué está bêbada, gritando e sem a roupa do personagem.”
Corremos até uma pequena salinha que ficava nos fundos, uma espécie de espaço para guardar roupas e fazer maquiagem. Lá, Josué dançava e rodopiava cantando “Meu Nome é Gal”, com ênfase nas letras finais “Gal..Gal..Galll”. Era um claro ataque de pânico, regado a aguardente. O cheiro de álcool era fortíssimo.
Rapidamente fui até a igreja para verificar o tamanho da tragédia. Estava lotada, mais de trezentos convidados e o conselho paroquial esperando nas primeiras fileiras. Metade do elenco já dançava no palco e a cena final da redenção, se aproximava. Era um desastre o que se anunciava, como quem vê um navio afundar, incapaz de interferir no destino.
Marco Ferreira usando todo seu talento conseguiu ter uma ideia: Cristo deveria entrar “embebecido” pelo conflito de forças, tonto e ajudado pelas forças do bem – Essa seria a explicação caso ele tivesse alguma queda ou demonstrasse seu estado alcoólico. Ninguém solta a mão de ninguém – frase que garanto foi criada naquela época.
Josué entrou um pouco cambaleante, mas virou um vulto em meio a tanta névoa. Vestido com uma túnica improvisada fez a paz entre as forças, sem falar, apenas com gestos. Uma nuvem que fizemos com gelo seco tomou conta da cena e ele foi majestosamente carregado até o fim do palco.
Nosso plano era jogar bastante fumaça para que não vissem que ele não estava bem. Parecia funcionar, provocando lágrimas na primeira fila. Cristo finalmente havia chegado, eliminando os conflitos, acalmando as forças que estavam em conflito. Aleluia!
“Estou cercado de ódio e ambição, mas vencerei essa batalha” disse Josué em uma fala não prevista. Acho que naquele momento ele se referia a terminar a peça e não sobre Cristo vencendo os sentimentos ruins do palco. O que importa é que o personagem ficou firme no final. Respiramos aliviados atrás das cortinas. A audiência se levantou para aplaudir, fechando a noite com total sucesso.
Na platéia, os membros do conselho paroquial se entreolharam e pareciam gostar da mensagem da peça – logicamente sem saber que o grupo era movido a vapor de cannabis e a show de drag queens. – conseguimos! disse Ferreira. Me senti finalmente incluído no grupo. Havia conseguido o espaço na igreja!
Assim que acabou a peça desaparecemos com Josué antes que o Padre e outros fossem ao camarim abraçar o “Jesus” da peça e partimos de lá correndo para uma kombi estacionada na porta da igreja – que seguiu ladeira abaixo lotada de felicidade e fumaça de maconha. Eu, caretíssimo, sem fumar e sem beber, gargalhava com o desfecho. Acho que era o único sóbrio do grupo, como se predestinado a sobreviver para contar a história.
Não houve outra peça – “Conflito de forças” foi encenada a pedido da igreja várias outras vezes: sete, na verdade. Todos da paróquia foram convidados – grupos de casais, grupo jovem – todo o bairro assistiu e adorou. Cada vez mais Josué estava “incorporando a personagem” mas coitado, nunca deixamos que ele falasse com ninguém, sempre escoltado como se fosse um ator famoso – e ele adorava. Se sentia um astro, quando na verdade estava apenas cercado de nossos preconceitos.
“Conflito de Forças” virou a atração daquele Natal e ultrapassou todos os limites de público que imaginávamos. Centenas de famílias, jovens e idosos na audiência em todas as sessões. Aplausos e até autógrafos nos bastidores. A plateia cantava as músicas, adoravam as coreografias dramáticas e claro, a redenção em fumaça de gelo seco e Jesus selando a paz. A igreja foi nossa única e última ceia.
A companhia de Teatro Liberdade se esfacelou nos meses seguintes, antes de me dar oportunidade de escrever algo. Minha carreira de autor terminava ali, sem choro nem vela. O grupo cambaleou como nosso personagem na peça, tonto e embriagado por brigas, ciúmes e amores sem chances – e nenhum Jesus apareceu para dar vitória às forças positivas em nossas vidas. Depois da formatura, cada um trilhou seu caminho. Alguns foram interrompidos, como uma peça que termina no primeiro ato.
Um ano depois, em 1987, a AIDS nos levou Marco Ferreira e antes dos anos 90 também nosso ator mais louco, Josué Castro. Ficamos esfacelados por dentro, por todos os lados. Desaparecemos uns dos outros.
O teatro, as canções da juventude, os amores que não deram certo, sempre voltarão em nossas memórias – um dia juro que vi Josué nas ruas desertas de Marechal, cambaleando de salto alto, na chuva.
Também cheio de saudades vi Marco Ferreira em muitos outros meninos, com seus cabelos encaixados e olhar penetrante. Me deixou de herança aqueles dias e um rabisco com um trecho de uma canção que mais gostava, “Estrelas”, do Oswaldo. “Quando eu não estiver por perto canta aquela música. Que a gente ria. É tudo o que eu cantaria. Quando eu for embora, você cantará.” Não podia acreditar que era uma profecia – e nunca mais nos vimos. Isolado e confuso com a doença, desapareceu.
Ele foi o amor de nossa juventude, o garoto que eu queria ter sido – desejado e popular – e o talento que projetava para meu futuro. Na época, achávamos que toda nossa geração morreria varrida pela epidemia que nos punia pela forma de amar. E em parte, foi o que aconteceu.
O sorriso de Marco Ferreira ficou lá, congelado em 1987, preso em uma peça de Natal sem fim, em poucas fotos e sobreviventes. Suas canções, suas letras bem trabalhadas, seu amor por meninos e meninas, seu olhar único ficou somente nas lembranças e escorrem em lágrimas e sorrisos quando falamos daqueles tempos. Especialmente no Natal quando vem a imagem do nosso audacioso espetáculo.
Uma época que foi de drama e comédia, blasfêmia, como a imagem de um Jesus, só nosso, inventado e clandestino, saindo daquela fumaça no palco. Um Natal que renasce a cada ano na memória, para alegrar nossos corações suburbanos e a memória daqueles jovens que ainda vivem em nós – em tempos de euforia e paixão.
Ainda hoje escuto ao longe o tema da minha favorita – a personagem alegria: “Um sonho, pensamento, luz. Quisera eu voltar a te abraçar, te encontrar, te querer. Quisera eu viver em seus braços”