RELATO
Tarde de janeiro. O verão torrando a mente num calor úmido. Certo só a chuva no final do dia. Não que refresque a noite.
A chuva lava o povoado levando para os rios todo tipo de lixo jogado pela cidade. Mas o rio vomita de volta tudo que nele jogam. Comerciantes limpariam a lama, de frente as suas lojas, no dia seguinte. As donas de casa também lavariam as calçadas. Janeiro era assim naquele lugar, naquela região que parecia ser vizinha do inferno.
Mas naquele dia o vento não armava as nuvens prenunciando o aguaceiro. A mansidão estava insistentemente azul com um sol de rachar cascos de cavalo na terra. Nem as aves ousavam sair dos ninhos pra mergulhar nas águas que batiam nas pedras rio abaixo.
Das varandas das casas, alinhadas na rua principal, os moradores tentavam se refrescar num ensandecido abano, já que a brisa não vinha. Sopro só do leques das moças do lugar.
Não tinha vento sul e nem nordeste. Os carros, que cruzavam a rua – eram poucos – vinham com as janelas fechadas, deixando claro que o ar condicionado estava ligado.
De repente surge na rua Azulão, um negro alto de voz gutural, que de tão negro parecia ser azul marinho. Seu nome verdadeiro tinha se perdido no tempo passado, ninguém sabia, nem ele mesmo. Azulão era respeitado por todos, muito mais por medo, do que por outra coisa. Diziam que ele tinha o dom da adivinhação, mas que vivia dizendo suas profecias sem que as pessoas ao menos pedissem. Isso causava um certo temor do que ele poderia dizer a revelia, na frente de todos ou de algum inimigo. Normalmente ele batia ponto na barbearia. Lá ele era bem vindo, pois abastecia de assuntos os clientes do lugar. Prévia de tudo; de resultado do jogo de bicho a sexo de criança, passando por prognóstico político nas eleições.
Mas naquele dia de janeiro Azulão agia diferente, olhava para o céu como se estivesse esperando um outro tipo de chuva. Seu olhar profundo e a testa franzida demostrava saber o que estava por vir. João da Barbearia percebeu e do outro lado da rua , abriu a porta de vidro do seu estabelecimento, olhou para cima e mandou:
— O que diabos você está olhando Azulão? Está prevendo chuva?
Azulão olhou pra ele e respondeu em voz alta pra todos ouvirem:
— Hoje o grande raio vem partir a pedra ao meio.
As mulheres nas varandas se benzeram e desconjuraram o coitado. João Barbeiro deu com a mão e disse que tinha mais o que fazer, voltando pra dentro da loja.
Mas quem ficou na varanda percebeu uma nuvem sobre a serra da pedra preta se aproximar. Azulão apontou pra ela e disse:
— Olha lá!
Nelson Bicudo esticou o pescoço e conseguiu ver, sem tirar a bunda da cadeira, a tal nuvem e chamou Margarida, sua mulher, pra ver também.
Margarida o repreendeu por dar crédito a um sujeito iletrado que só vivia fazendo previsões estapafúrdias no seu entender. Religiosa, ela só acreditava no padre da paróquia do lugar – mal sabia ela que o padre escondia um litro de purinha, do alambique do lugar no armário da sacristia. A hipocrisia fazia parte da cultura local.
João Barbeiro percebeu o movimento e voltou a calçada. Azulão já não estava no mesmo lugar. Ia adiante apontando pra nuvem que continuava ganhando o céu empurrada, agora, por um vento sul. Azulão sabia que ia chover, mas insistia que seria diferente, que não ia ter rio pra conter tanta água que ia cair.
Em pouco mais de meia hora o céu do lugar estava todo coberto. Uma revoada de andorinhas deixou claro que choveria logo a seguir. Mas o dia estava virando noite antes da hora. Azulão gritava que o grande raio iria cair a qualquer momento como prenúncio da enxurrada. As mulheres começaram a esvaziar os varais e os homens a recolher os animais.
Margarida, agora preocupada, mandou o marido gritar Azulão pra ele explicar melhor o que ele sabia. Nelson Bicudo, obediente e servil, berrou para Azulão voltar até a frente de sua casa. Azulão disse que não podia.
Até que Margarida, astuta, lhe ofereceu um pedaço de broa de milho com café. Nelson assim fez e fisgou o profeta pelo estômago. Azulão voltou e sentou-se na escada da casa, dali não passava. Aquela era a melhor paga que o pobre homem podia receber. Era desapegado por demais de bens materiais.
Na mesma hora João fechou a barbearia, Maria largou o tanque, Zé amarrou o burro e todos foram lá escutar aquele que desdenhavam, mas que sabiam sábio e especial.
Bicudo pôs o prato com os pedaços de broa e a caneca de ágata cheia de café fresquinho, antes mesmo de Azulão sentar. Azulão vestia o mesmo mandrião branco encardido e puído de sempre. Tinha uma barba rala e cabelo desgrenhado. Seus dentes eram incrivelmente brancos e conservados.
Margarida, num tom cético e agressivo, começou aquilo que deveria ser uma consulta, mas tinha um ar de tribunal do júri.
— Azulão, que história é essa de raio que vai partir o povoado ao meio? Tá doido?
Azulão, com o pedaço de broa na boca:
— Vocês sabe que a gente é que nem bicho, que nem planta, que nem os peixes du rio.
Margarida, desconfiada:
— Eu não sei nada disso não.
— Mas somu! Tudo foi Deus que fez.
Responde Azulão.
— Nisso você tem razão. Mas eu não sou que nem bicho não.
— Então. A natureza somu nós. E nós não pode maltratar as coisas do jeito que a gente tá.
— Como assim Azulão? Interrompeu Nelson bicudo.
— Jogando lixo no mato, derrubando a mata, matando os animá, prendendo os passarinho nas gaiola…
— Mas o que isso tem a ver com o tal raio? Quis saber Dorinha.
— Tem tudo a ver. Nós somos mais água que carne.
Margarida, querendo terminar a fala decretou:
— Azul, vai direto ao ponto. Já escureceu tudo e não demora vai cair um pé d’água daqueles. Aliás já vimos muitos por aqui.
—Mas esse é diferente. Olhe pru céu e veja os desenho das nuvens. Como elas se embolotam umas nas outras. Parece que estão se engolindo.
Maria e Zé do Burro olham pra cima e gritam juntos:
— Estão mesmo!
— Nesta tarde noite a água vai levar gente pra sempre, carro, casa…o rio vai subir e devolver tudo pra natureza.
Afirma Azulão.
— Cruzes!
Gritou João barbeiro.
—Creio em Deus Pai!
Disse outro.
— Mas é em nome de Deus mesmo. Nada será sem consentimento dele.
— Mas isso é pra já?
Quis saber Isabel, que chegou no meio da prosa.
Azulão respondeu com aquele vozeirão que mete medo em qualquer um:
— Primeiro será o grande estrondo. O choque entre as grandes nuvens negras. Depois o raio irá cair demarcando o lugar onde a tromba , cabeça d’água vai cair. Será tão intenso que a montanha descerá e pedras vão alterar o percurso do riacho e das ruas.
Desesperado e com voz fina Zé do burro quis saber:
— Será o fim então? O que devemos fazer?
— Devemos ajoelhar e rezar. Não adianta correr.
— Mas se nem Deus irá nos escutar, por que rezar?
— Pra acalmar a natureza e pedir perdão por não respeitá.
— Seremos levados pela enxurrada se ficarmos aqui. Constatou João.
— Sim e não.
— Como assim?
— Alguns ficarão, outros seguirão e os que sobrarem contarão os fatos aqueles que virão resgatar.
Quando azulão acabou de falar o grande estrondo aconteceu. Foi tão alto que Zé do burro se urinou todo. Nos quintais cachorros latiam e as galinhas fugiam de uma lado para o outro. Margarida correu pra sua sala, se ajoelhou em frente ao quadro de Nossa Senhora e se pôs a rezar. João correu pra barbearia pra colocar tudo pra cima. Nelson Bicudo, atônito, só reagiu depois de ouvir os gritos de Margarida e se colocou de joelhos ao lado dela reforçando a rezaria. Zé foi soltar seu burro pra ele não morrer enforcado pela corda. Só Maria, singela como uma flor, agradeceu a Azulão por avisar a todos o que estava por acontecer. Ela não temia, pois sabia que somente aquele homem simples, desdenhado por todos, poderia ser alcançado por tamanha sabedoria e missão.
Assim como previra, o raio bateu na serra da pedra preta partindo a rocha em duas faces, que se soltaram e atingiram o chão. Choveu tanto que sobraram poucos pra contar. Azulão cumpriu sua missão. Seu corpo desceu rio abaixo e nunca mais apareceu. Desencarnou sem nenhum tipo de reconhecimento em vida. Virou barro em algum sumidouro do rio, assim como muitos. Não fugiu da sua missão.
Azulão sabia demais. Desde cedo compreendeu a natureza como poucos. Outros iguais a ele estão por por aí sem ser escutados. Se não ouvirmos os sinais, só restará a restauração do jeito que só a natureza sabe realizar. Do barro viemos ao barro voltaremos.
No ano seguinte ao ocorrido nasceu tanta criança naquele lugar que foi uma alegria só. O tempo pariu uma nova vida que irá contar, quem sabe, uma outra história.
* Pintor, cartunista e ilustrador. Também é professor de desenho. Instagram