Como cidadã canadense, acompanho avidamente todas as noites de eleição nos EUA.
Embora não seja meu país, eu – como muitos – sinto a magnitude do que está em jogo nas eleições em um país cada vez mais dividido sobre questões de raça, gênero, economia e a pandemia do coronavírus.
Embora essa tenha sido a narrativa nos últimos quatro anos, os Estados Unidos sempre foi uma nação dividida. Essa divisão foi minuciosamente examinada no Projeto 1619 do New York Times, que procurou reformular a história do país, colocando a escravidão nas plantações e a experiência Afro-americana no centro da história americana.
Apesar dos fatos históricos, o que tornou a era Trump única em sua divisão é a maneira pela qual sua presidência tem sido marcada por um fracasso gritante em repudiar a supremacia branca, ao mesmo tempo em que desacredita as tentativas de cidadões Afro-americanos de recuperar seu lugar na história do país. Ele condenou o Projeto 1619, enquanto, paradoxalmente, afirmava que fez “mais pela comunidade Afro-americana do que qualquer presidente, com exceção de Abraham Lincoln.”
Embora possa demorar um pouco para conhecermos o vencedor das eleições, o que ficou claro na noite das eleições é que Trump teve um desempenho muito melhor do que as pesquisas previam. Porque essa corrida foi tão acirrada?
Ideologias diferentes
Trump e Biden não poderiam ser mais diferentes em termos de ideologia. Mas quando se trata de nostalgia, ambos os candidatos se apoiaram em uma ideia semelhante: a de trazer os EUA de volta a um tempo diferente.
Para Trump, “Make America Great Again” (“Torne a América Grande Novamente”) não só funcionou como um slogan político, mas também se transformou em um grito de guerra para seus seguidores que anseiam por um passado que nunca existiu.
Através de seu uso contínuo, o slogan não é apenas uma referência ao passado, mas também uma “estrutura de sentimento” — um termo cunhado pelo acadêmico Raymond Williams na década de 1950. O termo descreve o paradoxo entre a realidade das experiências vividas pelas pessoas — com as suas partes intangíveis e indefinidas na vida cultural — e as formas oficiais, materiais e definidas da sociedade.
Em outras palavras, MAGA não tem nada a ver com política — daí a razão da campanha de reeleição de Trump ter objetivos políticos indefinidos — mas tudo a ver com como e o que seus seguidores “sentem” e pensam sobre MAGA.
Biden também traz a marca da nostalgia e tem jogado com a ideia de uma América industrial do passado, onde as pessoas trabalham duro e amam suas famílias assim como seus vizinhos. É um lugar onde o “Joe honesto” pode reconhecer que algumas das políticas neoliberais do Partido Democrata que ele apoiou, incluindo a lei do crime de 1994, pode ter prejudicado o população Afro-americana. Pessoas cujos votos ele precisava — mas com quem ele, ao contrário de Trump, é capaz de se desculpar e mostrar o mínimo de empatia.
O argumento de Biden, então, era que “pelo menos” ele se importa. Isso foi o suficiente para conquistar a população Afro-americana?
Homens negros duvidam de Kamala Harris
Mesmo com Kamala Harris, uma mulher negra (que também se identifica como sul-asiática) no pacote, a população Afro-americana se sente dividida sobre sua lealdade.
Enquanto as mulheres negras estavam excitadas com a escolha de Biden, muitos homens negros não sentiram o mesmo. E não foi por causa de suas decisões políticas como senadora da Califórnia, mas sim por seu antigo emprego como procuradora geral da Califórnia, e antes disso, como procuradora do distrito de São Francisco, onde, sob seu mandato, 40% da prisões acontecia entre a população negra, que representa menos de oito por cento da população total da cidade.
Assim, ao contrário da narrativa de organização comunitária e ativismo ligada a Barack Obama durante a sua campanha presidencial de 2008 que parecia substituir o seu trabalho como senador, o passado de Harris aparentemente ofuscou seu trabalho no Senado, mesmo com seus votos tendo sido em favor do povo Afro-americano.
A proximidade na porcentagem dos votos da eleição de 2020 tem muito a ver com a forma como Trump e Biden invocaram um passado imaginado, uma narrativa que sugere que os Estados Unidos precisa estar sempre olhando para trás em vez de voltar seu olhar para o futuro.
Olhando para trás
Os slogans de 2008 de Obama — “Change we can believe in” (“Mudança na qual podemos acreditar”) e o bordão “Yes We Can” (“Sim, nós podemos”) — foram tão poderosos porque projetaram um ar de possibilidade sobre o futuro, que as coisas poderiam melhorar e que os eleitores tinham o poder de fazer isso acontecer.
A frase “Make America Great Again” (“Torne a América Grande Novamente”) de Trump e “Battle for the Soul of America” (“A batalha pela Alma da America”) de Biden não tem nada a ver com os eleitores ou a sua capacidade de criar um futuro; em vez disso, ambos slogans passam a mesma mensagem: houve um tempo nos EUA onde as coisas funcionavam, onde a nação não era contaminada pela divisão, e é para esse tempo que devemos retornar.
Este ato de esquecer a realidade, agarrando-se a um passado fictício em que só haviam dias de ouro, faz lembrar a faixa-título do filme de 1973 O Nosso Amor de Ontem, estrelado por Barbra Streisand e Robert Redford. A canção The Way We Were, também interpretada por Streisand, foi um grande sucesso, chegando a alcançar número 1 na Billboard Year-End Hot 100 singles em 1974.
A maioria das pessoas não se lembra que Gladys Knight & The Pips também lançou um cover R&B da mesma canção em 1974. Na memória coletiva do público a canção pertence a Streisand; é difícil imaginar outra pessoa cantando essa canção. Em outras palavras, as pessoas esquecem os detalhes, mas o icônico é sempre lembrado. Streisand é um ícone. (Knight é um ícone por direito próprio, mas principalmente entre Afro-americanos.)
Trump é icônico
Da mesma forma, Trump é uma figura icônica cuja adoração de seus fãs conseguiu triunfar sobre o próprio Partido Republicano. Ele convenceu seus fiéis seguidores a se agarrarem ao passado porque era uma época mais simples, e isso dá às pessoas a oportunidade de viver essa simplicidade — por mais fictícia que os democratas acreditem que ela seja — de novo e de novo.
Nossas memórias do passado não importam; o que importa na era Trump é a reescrita de cada linha de fatos históricos reais. Biden confiou na empatia e no sentimento para reconquistar a presidência, para trazer de volta uma América bondosa com seus numerosos “Bidenismos” folclóricos, enquanto Trump fez o que ninguém pensava ser possível — ele confundiu os cidadãos ao ponto de muitos provavelmente não se lembrarem de como o país era antes de 2016.
Embora Trump goste de evocar o nome de Lincoln, foi ele mesmo que disse: “uma casa dividida contra si mesma não se sustenta.”
Os país está dividido. Mas a questão é, quando a poeira abaixar e as todas as cédulas estiverem contadas, será que haverá vontade de fazer dos EUA a nação que o país tão desesperadamente diz a si mesmo (e ao mundo) que pode ser?
Traduzido do inglês por Grazielle Almeida / Revisado por João Victor Anastácio de Oliveira