CONTO
A tia chega apavorada e com cara de choro. Poucas foram as vezes que comparecera em algum encontro da família, sempre tinha algo a fazer que era mais importante do que ver parentes com suas mesmas e velhas histórias. Nunca deu a importância ao amor que uma tia deve exalar. Amar não era seu forte. Viera por que a situação era grave por demais. Ele, único sobrinho, filho da irmã mais velha poderia partir, igual a muitos, que estavam indo embora sem avisar. Muitas foram as vezes que ele percebeu a indiferença dela ao não convida-lo para um simples passeio pelo shopping, com os filhos das suas amigas. Sua mãe, sentada numa cadeira fria, ao lado da cabeceira, gostaria de dizer algumas verdades, mas temia que o ato o deixasse mais fraco.
Ela tinha muitas mágoas guardadas no coração. Foram muitas as vezes em que precisou de ajuda e a irmã se fingiu de ocupada. Naquele dia ela resolveu exercitar a compaixão; colocou seu óculos escuros, pegou o sobretudo com cheiro de guardado, antes mesmo de passar uma maquiagem pesada na cara, e foi até o hospital.
— Como você está querido?
— Bem, tia.
Uma tosse seca interrompe a oração. Sua mãe pega o copo d’água e estende a mão. Mais do que rapidamente a tia solicita, num gesto nunca antes visto, pega o copo e leva a boca do sobrinho. Era tanta gentileza que beirava a hipocrisia.
– Você vai ficar bem. Prosseguiu ela.
A culpa estava estampada na sua face. Não tinha resposta para tamanha indiferença. Não era mais rica, não era mais bonita. Tinha um cabelo com as pontas quebradas. Talvez desejasse apenas não ter compromissos ou medo de algum familiar lhe pedir ajuda.
– Sabe, titia está orando muito por você.
– Obrigado tia.
Ela não tinha muito o que dizer. Não sabia onde colocar as mãos. Trouxera um pacote de biscoito de Maizena, como se aquilo fosse grande coisa, e colocou na mesinha que ficava próximo à janela do quarto do hospital.
Com o tempo o diálogo ficou picotado por algumas expressões e olhares desconfiados e de reprovação. Chegou a prometer que o visitaria em casa, quando saísse dali. Pra quebrar o gelo, teve uma iniciativa constrangedora. Resolveu relembrar o tempo de infância, como se pudesse justificar alguma coisa. Passou a contar sobre o tempo da escola primária e as muitas peraltices que fizera com a mãe dele, sua irmã. O rapaz ouvia tudo sem ter outra opção. A tia era descompensada e falava pelos cotovelos. Não dava tempo pra interrupções. A sua versão bastava. Seus gestos eram teatrais.
Fez um monólogo aos pés do jovem moribundo. Sua voz ganhava os corredores vazios da Santa Casa. A irmã olhava pra ela com pena. O rapaz nada esboçava. A hora ia passando sem que ela se tocasse de que estava sobrando. De repente o enfermeira entrou no quarto e passou a conferir os equipamentos ligados ao jovem. Sua mãe ligou o alerta. O rapaz estava ficando pálido. A tia mais do que depressa se lembrou de algum afazer e saiu correndo do quarto pensando no que poderia acontecer. Foi pelo corredor em direção ao elevador. Estava tão assustada que desceu os cinco andares pela escada. Seu salto alto batia no mármore sendo possível ouvir no décimo andar.
No quarto a coisas voltariam ao normal. O susto foi grande, mas tudo não passou disso. Não foi daquela vez que a morte alcançaria o jovem.
De repente, da rua vem uma freada seguida de um estrondo seco. Atordoada com o que vira, a tia atravessou a rua sem olhar para os lados e não viu a aproximação de um ônibus lotado.
A tragédia se consumou no meio da tarde, a tia foi atropelada na porta do hospital pra onde não deu nem tempo de ser socorrida. Morreu vestida de roxo, levando a culpa de uma vida toda consigo. A morte que rondava tinha alvo certo.
O sobrinho se recuperou prontamente. Ela se foi sem admitir que abriu mão de ser amada pelos seus.