20 DE NOVEMBRO. DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA
Por Pedro Barreto*
O centroavante irrompe a defesa e penetra na grande área. O gol parece iminente. Ele ajeita o corpo, posiciona o pé de apoio ao lado da bola e se prepara para desferir o chute que abrirá o placar. Eis que surge, contudo, o arqueiro negro. Sua envergadura descomunal obstrui a visão do atacante, bloqueando-lhe a visão da rede adversária que milissegundos atrás era nítida. Intimidado, o camisa nove sente as pernas arquearem. Ele ainda tenta acertar o ângulo entre a ponta do pé do ciclópico goleiro e a trave. Mas a bola é desviada para escanteio pelas luvas salvadoras.
Esta cena tem sido comum em jogos recentes do Clube de Regatas do Flamengo em que o goleiro Hugo Souza está em campo. Alguns ainda o conhecem como “Neneca”, apelido da categoria de base. Mas o próprio prefere ser chamado pelo nome de batismo. Aos 21 anos, Hugo surgiu para o grande público em uma partida do Campeonato Brasileiro contra o Palmeiras, no Alianz Parque. O Flamengo enfrentava um surto de Covid-19 no elenco e tentara adiar o jogo. Ao todo, 41 atletas foram contaminados. A sensata Confederação Brasileira de Futebol (CBF), entretanto, impediu o adiamento do jogo. Com isso, o rubro-negro carioca levou a campo um time de jovens atletas desconhecidos de sua imensa torcida. O milionário elenco do Palmeiras, comandado pelo experiente e consagrado treinador Vanderlei Luxemburgo, tinha o valentão Felipe Melo como capitão. Ao Flamengo, restava enfrentar o escrete patrocinado pela Crefisa e torcer para que o placar final não fosse deveras humilhante. O resultado? Hugo Souza foi eleito o melhor homem em campo, salvando pelo menos três gols certos do rival.
Sua elasticidade, explosão muscular e tempo de reação impressionaram a crônica esportiva. Importante lembrar que o goleiro titular até então era o veterano Diego Alves, campeão Brasileiro e da Libertadores pelo clube em 2019. Alves passara quase toda a carreira na Europa e se tornou conhecido por ter defendido pênaltis de ninguém menos que Messi e Cristiano Ronaldo em jogos da Liga Espanhola. Após o jogo contra o Palmeiras, Hugo surpreendeu também pela eloquência, lucidez e maturidade. Contou um pouco sobre sua trajetória e da perda do pai, que o incentivara a seguir na carreira. Chorou diante das câmeras ao dedicar o prêmio de craque da partida ao saudoso progenitor.
Hugo continuou atuando como titular da equipe nos jogos posteriores. Demonstrava a cada dia mais segurança na posição. Tanto que a renovação do titular Diego Alves travou. O novo contrato com o clube, que era quase certo, foi colocado em dúvida pelo departamento financeiro. Por que pagar R$ 1 milhão mensais a um jogador veterano, se está surgindo um jovem com potencial para superá-lo no curtíssimo prazo?
No entanto, não podemos esquecer que o bruto esporte bretão é uma modalidade coletiva, em que o sucesso de um é o sucesso de todos. Assim como o fracasso. Com muitos atletas lesionados, outros convocados para a seleção brasileira e um técnico que parecia não entender muito bem a cultura do futebol brasileiro, o poderoso e vitorioso Flamengo passou a perder jogos inexplicavelmente. Os jogadores erravam fundamentos elementares e proporcionavam chances que se convertiam em gols e estes em derrotas vexatórias por 3, 4, 5×0. Hugo não foi exceção. As limitações naturais do jovem atleta, com conceitos ainda a serem aprimorados, foram sendo desveladas. Saídas de gol precipitadas em cruzamentos para a área e, principalmente, o domínio deficiente da bola com os pés foram pontos que passaram a ser observados e explorados com eficiência pelos adversários. No jogo de ida das quartas-de-final da Copa do Brasil contra o São Paulo Futebol Clube, Hugo tentou driblar o atacante são-paulino dentro da área, acabou perdendo o controle da pelota e permitindo o gol adversário.
A derrota deixou o time da Gávea com poucas chances de prosseguir na competição. A crítica esportiva foi dura com o goleiro. A maioria dos torcedores relevou a falha e enviou mensagens de incentivo ao atleta. Mas uma minoria, encorajada pelos tempos sufocantes de racismo e intolerância, manifestaram toda a sua estupidez em forma de insultos criminosos contra o goleiro. A reação de Hugo foi digna de um homem honrado e corajoso. Após o jogo, assumiu o erro diante das câmeras de televisão e não se rendeu: “Pude sair como destaque do time em vários jogos de forma positiva. E hoje infelizmente, errei. A falha vai acontecer. Todo mundo falha, todo mundo erra, todo mundo é ser humano. Mas o importante é continuar trabalhando para que das próximas vezes eu não cometa o mesmo erro, que pode ser fatal, como foi hoje, que pode definir uma classificação”, disse à TV Globo.
Alguns “entendidos” viram soberba na declaração. Compreensível. Em uma sociedade estruturalmente racista como a brasileira, supõe-se que o lugar do negro é o da humilhação, da derrota, da vergonha. Barbosa, o genial arqueiro negro da Copa de 50, passou à posteridade como o culpado – quase um criminoso – pela derrota do time nacional ante do Uruguai. Perguntado sobre a máxima de que negros não seriam aptos a atuar como goleiros, o advogado, filósofo, professor e filho de goleiro Silvio de Almeida respondeu: “O futebol é uma coisa contraditória e complexa. No futebol, você tem forças e energias fundamentais para a luta antirracista. Se não fosse o futebol, eu não estaria aqui. Eu sou um professor de Direito, mas o futebol permitiu que meu pai construísse algo para me dar possibilidades de estudar. Ao mesmo tempo, o futebol é atravessado pelo que tem de pior na sociedade, como o racismo. Por que meu pai teve o apelido de ‘Barbosinha’ – por causa do goleiro da seleção, o Barbosa. E eu notei que o apelido do meu pai era por conta de eles serem negros. E meu pai não herdou apenas o apelido, mas o estigma sobre os goleiros negros”, comentou Almeida.
Sabemos que goleiros são o último bastião de defesa da meta de um time de futebol. As falhas deste jogador podem resultar em derrotas irrecuperáveis para todo o time. No entanto, alguns têm mais chances de ter seus erros perdoados do que outros. Como o futebol não é algo alheio à sociedade, o racismo também está ali presente. Jogadores negros, e principalmente goleiros negros, possuem margem de erro mais curta que os demais atletas. Por isso, em todo o mundo sempre foram comuns as manifestações racistas contra jogadores de futebol. Neste momento, como resultado de conquistas históricas do movimento negro, essas manifestações estão sendo expostas e os seus autores, exemplarmente constrangidos.
Talvez ainda estejamos longe de nos livrar do racismo, assim como do machismo e do preconceito de classe, que marcam de forma estruturante a sociedade brasileira. No entanto, a resistência também é uma marca histórica e ancestral do povo negro. Ela está e estará presente em cada salto, em cada defesa e em cada declaração corajosa, altiva e exemplar de Hugo Souza.
* Jornalista, antirracista, antifascista e rubro-negro.