CRÔNICA

 

 

O justo era algo distante, tipo inacessível, algo que não tínhamos direito de exigir. Pra gente como nós cabia o trabalho braçal e o mínimo salário. Não importava nossos sonhos de uma vida melhor. Trabalhávamos sem quase nenhuma proteção. A serra elétrica, zumbia nos ouvidos e vez por outra, decepava dedos mutilando a mão. A mesma que levava o pão.

Traçavamos as toras, vindas do Norte do país em carretas guiadas quase sempre por gaúchos, em grandes serras elétricas. Descer as peças do enorme caminhão exigia um esforço descomunal. Era fundamental ter sincronismos pra não esmagar a mão ou o pé, caso ela escorregasse.

Eu, Tião Zé, guiava a peça, Oswaldo da Hora ou Dunga, sustentava a peroba rosa na outra ponta. A serra ia rasgando a madeira nobre, de 12 a 18 metros, dividida em tábuas perfeitas. Duro era aguentar o pó amargo que entrava pela boca, narina e poros. Era tanto pó de serra que de negros, ficamos da cor da madeira. Riamos um do outro quando o sinal soava indicando a hora do almoço. Batíamos no corpo e lavávamos as mãos e o rosto. Os cabelos só no final do expediente. A fome não podia esperar, o estômago roncava e o descanso era curto. Na marmita o feijão, o arroz, o ovo frito, a farinha e o ensopado de chuchu. Comíamos rápido pra dar tempo de uma cochilada antes do retorno ao turno da tarde.

Mas a turma era boa de resenha e, normalmente, ninguém dormia. Tinha o seu Oswaldo da Hora, de quem já falei, o Escalera, seu Mané rato, Paulo boy, Dunga, Hélio Zé, Dico, seu Italiano e outros mais. Parecíamos estivadores de um porto qualquer.

Uma pequena Babel com vários idiomas: português, italiano e espanhol. A maioria de negros, mas tinha os imigrantes explorados a exaustão. Todos pobres ou quase pobres. Os patrões eram portugueses. Éramos orgulhosos pelo peso que carregávamos e por transformar a madeira em objetos que comporiam alguma casa de veraneio de um bacana carioca na aprazível Teresópolis, refúgio badalado da serra Fluminense. Tínhamos braços fortes como desejava o sistema vigente. Não havia muito mais a conquistar. A vida era assim e pronto. Sonhávamos com dias melhores para nossos filhos. Pra nós mesmos, não. Pelo menos não deliberadamente. Pensávamos no gás, na luz, na água e nas contas penduradas, ali e acolá. O fogão a lenha e a luz de lamparina ainda eram necessárias. A rotina nos prendia a uma vida sem saída. Um círculo de pobreza, que parecia dizer que aquilo era muito, que devíamos nos dar por satisfeitos, mas sabíamos que era quase nada. A bebida que aquecia o peito, bambeava o juízo, as pernas no final do dia, queimava a garganta, oferecia uma fuga necessária a falta de perspectiva. Bebíamos pra rir da nossa própria desgraça. Assim descia a primeira, a segunda… afastando a gente dos problemas reais.

Heroínas foram nossas mulheres, mães dos nossos filhos. Vivíamos um outro tipo de escravidão remunerada que nos detinha no lugar feito uma árvore centenária. O ópio, o álcool, o cigarro barato eram ótimos alentos. Ninguém tinha noção real do que provocava aquela situação. Todos ali queriam apenas ser felizes. O país vivia na escuridão dos anos de chumbo e a vida derretia nos porões da ditadura. Não seríamos nós, operários padrão, que iríamos nos rebelar. Quando o sol da liberdade resolveu raiar, no início dos anos 80, muitos já estavam combalidos pelo excesso de uma vida toda dedicada ao trabalho braçal e insalubre. Quase todos morreriam, na década seguinte, por problemas pulmonares ou cardíacos. Poucos chegaram aos 60 anos de vida. Eu me despedi aos 53, bem antes do que queria. Mas confesso que fui orgulhoso. Com os frutos que plantei e cultivei a vida inteira. Entendo que a vida é feita de fases e, cada um, tem que enfrentar o que se apresenta com dignidade. Subi o meu degrau em paz. Se poderia ter sido melhor? Com certeza que sim.

Sei disso agora, mas agora estou na sombra a observar a luta travada pelos meus iguais na vida que há.