Sobre censura e autocensura no Brasil
Segue dissimulada a discussão sobre censura à imprensa no Brasil. Dissimulada porque parcial. A discussão leva em conta apenas a censura à imprensa – sempre abjeta. Mas não analisa a cotidiana autocensura da imprensa. Também abjeta.
Se por um lado o estado tem o poder de impedir a imprensa de noticiar ao público o envolvimento do próprio estado com o crime organizado, por outro, a imprensa tem o poder de deixar de noticiar informações de interesse da sociedade. E o faz sempre que precisa.
Assim, “na hora que a televisão brasileira distrai toda gente com a sua novela”, a plebe segue sem ser informada sobre as opressões sofridas.
O texto que se segue tem a única pretensão de imaginar uma imprensa mais responsável, acreditando que o caminho passa por discutirmos a autocensura no jornalismo brasileiro.
Estado e imprensa violam o direito à informação no brasil
Vejamos: o estado recorre ao judiciário para censurar a imprensa. Mas a mesma imprensa, vítima de censura, recorre ao judiciário para censurar outros veículos de comunicação.
De autoria da Associação Nacional de Jornais, a Ação Direta de Inconstitucionalidade, ADI Nº 5.613, visa impedir por meios jurídicos que jornais estrangeiros publiquem em Português do Brasil, via internet.
A disputa entre o oligopólio midiático brasileiro e a imprensa on line internacional visa à audiência. Em decorrência de audiência, verbas publicitárias. E, por último e o mais importante, a disputa visa controlar as narrativas. Dar sentido aos fatos.
Para isso, tanto o estado como as empresas de comunicação recorrem a subterfúgios “legais”, a fim de silenciar opiniões divergentes. Às vezes, silenciar fatos.
Portanto, é estratégico controlar o que é noticiado. E restringir a imprensa estrangeira, de forma “legal” é um objetivo comum de estado e imprensa nacional. Mas as semelhanças entre imprensa e estado não param por aí.
O jornalismo hegemônico se comporta exatamente como o estado fascista. Quando não querem discussão sobre um tema, eliminam o termo da pauta. Simplesmente, não se toca no assunto. Foge-se dos debates. Tanto a mídia como o Estado.
Apagar é o verbo
Em 2019, O Ministério da Saúde usou essa estratégia com as expressões “HIV/AIDS” e “violência obstétrica”. Retirou os termos de publicações oficiais.
Por sua vez, recorrendo a mesma estratégia, a “grande imprensa” brasileira segue a autocensurar os genocídios das populações indígenas e negras. Crimes em curso neste exato momento.
Não é notícia no Brasil que o país conviva com dois genocídios. Ou seja, dois crimes contra a humanidade seguem sob o silêncio cúmplice da imprensa nacional.
Percebe-se que por aqui há jornalistas e jornais que dizem defender os Direitos Humanos, mas praticam violações do direito humano à informação. Ao contabilizarem o mundo em valores notícia, pesam que crimes denunciados à Corte Penal Internacional de Haia e ao Supremo Tribunal Federal não devem ser informados à população.
No Brasil, direitos humanos são notícia. Crimes contra a humanidade, não
Quando a prática diverge do discurso, dissimular é preciso. Então, as empresas de jornalismo noticiaram o lançamento do Observatório de Direitos Humanos do Poder Judiciário, pelo Conselho Nacional de Justiça, em 17 de setembro de 2020.
No entanto, contraditoriamente, não cumprem o papel de informar sobre a notícia-crime nº 9020, que o presidente da república responde no mesmo Supremo Tribunal Federal. O chefe do executivo brasileiro responde por genocídio. Mas a imprensa recorre ao poder de autocensura e tenta, vergonhosamente, apagar o tema do debate público.
Debate que Pressenza sente-se responsável em ampliar ao máximo e compartilhar com o maior público possível. Com esse objetivo, em agosto de 2020, realizamos o iNFORME Pressenza Nº 4, com o Advogado André Barros, responsável pela ação contra o presidente no STF. Pela gravidade da situação, André apela à imprensa nacional: “esse debate tem que acontecer na mídia brasileira.”
(Auto)censura pelo abuso de poder econômico
Para transformar a realidade social de populações vulneráveis é fundamental que se rompa com o tripé formado por baixa escolaridade, subemprego e baixa renda.
Assim, iniciativas como cotas para populações indígenas e negras são exemplos de políticas públicas bem sucedidas. Linhas de fuga desse secular círculo vicioso.
Porém, a imprensa quando teve oportunidade de atuar nesta direção, boicotou a publicação de informações sobre a política pública de ações afirmativas a ser votada pelo STF, em março de 2010.
A estratégia utilizada por uma empresa de jornalismo foi elevar o preço do espaço na página, a fim de inviabilizar a publicação de grupos do movimento negro.
Inicialmente, o jornal cobrou R$ 54 mil pela página. Depois de tomar ciência do conteúdo, que informava sobre as cotas para negros e negras nas universidades públicas, o jornal subiu o valor da página para R$ 712.608,00. Isso mesmo: setecentos e doze mil seiscentos e oito reais por uma página. O conteúdo não foi publicado. Há processo na Justiça.
Outros jornais veicularam o mesmo conteúdo por um valor médio de R$ 35 mil pela página.
Nesse caso, cabe a pergunta: cadê a “expressão democrática” que a imprensa nacional diz representar ao se defender de censura? Cadê o interesse público? E o direito à informação da sociedade?
Black Lives “lá” Matter
Também há casos em que as semelhanças são tantas que viram um alinhamento entre jornalismo e estado violador de direitos. No contexto de Covid-19, por exemplo, a imprensa silencia sobre as criminosas remoções. Famílias que não têm onde morar são desalojadas em plena pandemia.
Pessoas idosas, mulheres, crianças – quase todas pretas -, foram mais expostas à pandemia por ação do estado. E diante da covardia com gente tão fragilizadas, a imprensa se cala. Ou, pior, quando fala, criminaliza os movimentos sociais por moradias.
Assim como criminaliza os territórios e os corpos pretos das favelas, com manchetes cuja regra é: juventude negra favelada é traficante. Traficante branco de área nobre é jovem. Juventude negra favelada é a mesma assassinada diariamente. Em todo país. Há décadas.
Mas se compararmos o tempo que a imprensa nacional dedicou a cobrir manifestações do movimento Black Lives Matter, nos Estados Unidos, e o tempo de cobertura jornalística das manifestações domésticas ao longo do últimos anos, parece que é menos importante o fato de 75% das vítimas de violência no Brasil serem negras. Um genocídio.
Aliás, conceito que leitoras e leitores podem buscar nas páginas eletrônicas dos “grandes jornais”. E, assim, experimentarem um pouquinho da autocensura. Parece de graça. Mas custa caríssimo.
Todos os dias, a imprensa diz a todas e todos nós, em alto e bom som: “você não vai saber sobre os genocídios das populações negras e indígenas no Brasil”.
E você fica sem saber. Mas sabe que Black Lives Matter.
100 mil mortos. Nenhum responsável
Voltando ao contexto de pandemia, é triste destacar que no domingo, 09 de agosto de 2020, quando a COVID-19 havia matado mais de 100 mil brasileiras e brasileiros – sobretudo das populações mais vulneráveis, e racialmente bem demarcadas -, os jornais impressos de maior circulação preservaram o nome e a cara do chefe do executivo.
Aquele que debochou, mentiu, descumpriu protocolos, tirou dois ministros da Saúde pra ficar com um militar como ministro interino, que nada conhece de Saúde.
Ou seja, um presidente que se utilizou de uma pandemia para alcançar objetivos políticos e escusos. Mas para a imprensa brasileira, nada disso se relaciona com os números da tragédia.
Por isso, o presidente não saiu nas capas dos principais jornais. Coincidências de um jornalismo plural, independente, que se intitula “bastião da democracia” e defensor do interesse público.
Carrasco no cadafalso
O convite a essas reflexões tem o objetivo de identificar um padrão presente na “grande imprensa”. Os episódios aqui apresentados ilustram esse padrão de autocensurar os genocídios indígenas e negros, em diferentes contextos, com evidentes motivações raciais.
A discussão sobre censura e autocensura é necessária, sadia e urgente. Visa denunciar, refletir coletivamente e propor ações. Iniciativas por uma imprensa promotora da ética, do respeito e garantidora da vida. Movimento de mudança que não virá das capitanias hereditárias na comunicação social brasileira.
Por isso, é importante superarmos as discussões dissimuladas sobe censura, propostas pela imprensa hegemônica nacional, acrescentando-lhes o componente da autocensura.
A imprensa é vítima e algoz. Cúmplice e autora. Espécie de médico e monstro. Como nos ensina a História, monstro a ser combatido de pronto.
Jamais banalizado. Jamais esquecido.