20 DE NOVEMBRO. DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA
“Um filme não pode transformar os costumes sociais,
mas a reflexão sobre o conteúdo exposto, sim”
Em tempos de intolerância religiosa, sobretudo aquela que afeta as religiões de matrizes africanas, como o Candomblé, o documentário “O Abebé Ancestral”, de Paulo Roberto Ferreira Filho, 23, natural de Itabuna-Bahia, nos ajuda a compreender que a fé nos Orixás pode nos motivar a vencer batalhas e a gerar empoderamentos. O jovem documentarista nos auxilia na compreensão de questões importantes, como os valores morais contidos na prática do Candomblé. Além disso, enfatiza o quanto esta religião é sinonimo de força, de saberdoria e de luta contra todos os tipos de opressões.
Entre os 256 curtas brasileiros inscritos, “O Abebé Ancestral” é um dos 20 selecionados (e o único baiano) para a Mostra Competitiva da 2ª Edição do Festival Recanto do Cinema, que acontecerá entre 25 de novembro e 12 de dezembro de 2020.
– Antes de falarmos propriamente sobre o Documentário “O Abebé Ancestral”, gostaria que você falasse um pouco sobre o Candomblé. Como você define?
– A sociedade brasileira tem a sua ancestralidade entrecruzada por uma dimensão afrobrasileira. Orixás que eram cultuados em regiões distintas atravessaram o oceano e passaram a ser agrupados em um mesmo templo religioso, ao qual chamamos de terreiro, fato que se desmembrou em diversos costumes sociais hoje tradicionais no Candomblé, mas nem sempre existentes em terras africanas.
Além disso, na nossa forma de ver o mundo (cosmovisão), o homem não é o centro, mas uma parte dele. Isso enfatiza a importância societal da religiosidade, fator que atribui ao indivíduo um sentido para a vida a partir do qual o Orixá se torna também a segurança e a esperança de dias melhores. Por isso, trabalhar a espiritualidade parece ser sinônimo de valores morais, o que se dá, entre outras formas, por meio da tríade que fundamenta o Candomblé: segredo, uma preocupação preservacionista; preceito, a conduta filosófico-moral; e respeito, de teor auto-explicativo. Assim, o contato com o sagrado é subsidiado pelas experiências cotidianas e familiares, nas quais o ser humano aprende o tempo todo a ser uma pessoa melhor para si e para a comunidade, a fé envolve essa motivação.
– O que levou você ao Candomblé e que posição você ocupa na hierarquia dessa religião?
– Eu acredito que cada pessoa tem o seu chamado. O meu primeiro foi a saúde. Eram tempos em que tinha a saúde frágil e foi no axé que descobri a cura. Todo terreiro de Candomblé é uma grande família na qual cuidamos uns dos outros. E no Ilê Axé Odé Omopondá Aladê Ijexá, meu terreiro, não é diferente. Eu sou conhecido como Aláramó, consagrado ao Orixá Oxalá e a minha função é a de Babalossain, o sacerdote de Ossain (Orixá da flora), cargo que recebi em abril de 2016. Desde então me dedico ao estudo e prática da administração e utilização consciente das folhas no terreiro, o que ocorre através do plantio e colheita, dos banhos de folha, chás, incensos, entre outros.
Para nós, do Candomblé, tudo na Natureza tem dimensão litúrgica e merece ser reverenciado: cantamos para Ossain e também para as folhas; abraçamos as árvores, pedimos licença ao entrar e sair da mata, questões fundamentais para o culto aos Orixás e também para a cura e prolongamento da saúde das pessoas em uma dimensão físico-espiritual. Essas práticas não existem para substituir a medicina tradicional. É comum, para determinadas doenças, um adepto tomar o banho de folha, mas também o remédio comprado na farmácia. Uma coisa não anula a outra. Por vezes, se complementam.
– O título do documentário é “Abebé Ancestral”. O que significa Abebé?
– Abebé é uma das ferramentas relacionadas a Orixá Oxum (divindade das águas doces) e consiste em um leque com formato arredondado e um espelho no centro, símbolo de auto-afirmação. No documentário, faz alusão à história de Mejigã, sacerdotisa da Oxum que sofreu diáspora no século XIX, sendo trazida da cidade nigeriana de Ilexá e escravizada no Engenho de Santana, em Ilhéus-Bahia, do qual escapou, resistindo e se tornando símbolo de empoderamento ao gestar uma dimensão Ijexá no Sul da Bahia. Com outras palavras, Mejigã é a “Ancestral” e o “Abebé” a riqueza presente na sua mãe Oxum, Orixá que a acompanhou nessa trajetória.
– Por que fazer esse documentário? O que lhe motivou?
– Eu sempre ouvi a história de Mejigã ser contada pelo meu avô de santo, o Babalorixá e escritor Ajalá Deré (Ruy do Carmo Póvoas), a quem dedico o documentário. Ele é descendente sanguíneo de Mejigã em quinta geração e uma das referências desse trabalho é o seu livro “Mejigã e o contexto da escravidão”, publicado pela Editus (2012). Além disso, a minha Ialorixá Mãe Darabi (Alba Cristina Soares) é membro do Ilê Axé Ijexá Orixá Olufon, terreiro fundado pelo Babalorixá em 1975. Ela sempre foi cuidadosa no que concerne à preservação de tudo que diz respeito à nossa ancestralidade e há alguns anos me elencou como o responsável por contar essa história no início das festividades do Ilê Axé Odé Omopondá Aladê Ijexá, terreiro do qual faço parte.
Sou estudante de Comunicação Social – Rádio e TV (UESC) e o encontro desses saberes com o audiovisual se deu a partir da disciplina de Vídeo Educativo, com a professora Betânia Maria Vilas Bôas Barreto, que me mostrou ser possível me tornar um documentarista; ela me orientou, carinhosamente, em todas as etapas. Durante um semestre letivo desenvolvemos pesquisa de campo no meu terreiro, momento em que a comunidade sinalizou a necessidade de discutir essa história sob o viés da desconstrução crítica, o que acontece no documentário.
Além disso, no período 2019-2020 desenvolvi, sob a orientação da professora Valéria Amim, um projeto de Iniciação Científica, que deu origem a um Catálogo Fotográfico sobre os Ijexás no Sul da Bahia. Sou grato a ela e ao colega Vinícius Teófilo, pois o conhecimento inerente às discussões, viagens e leituras que fizemos previamente contribuíram para a minha formação crítica, refletida no documentário.
– É perceptível uma dominância de elementos da Natureza, como água e plantas no documentário. Por quê?
– Estamos discutindo um gênero (o documentário) que pode atrelar questões factuais e, ao mesmo tempo, dar vazão à subjetividade dos realizadores e do público que assiste. Nessa perspectiva, “O Abebé Ancestral” unifica o teor factual presente nas entrevistas participativas com Mãe Darabi (Alba Cristina Soares), Ialorixá, atriz e ativista e Olúkóso (Luzi Borges), Kolabá de Xangô e Doutora em Educação com as performances da atriz Izadora Guedes como Oxum.
Ademais, conforme a minha Ialorixá Mãe Darabi afirma no documentário: “O axé acredita que as matas virgens representam o Orixá Oxóssi, acredita que as águas doces representam mamãe Oxum, acredita que o fogo representa Xangô, os raios e trovões representam Oyá, acredita que o mar que é esse berço do oceano todo representa Iemanjá.” Assim, se justifica a opção de escolher a água como o principal dispositivo metafórico neste documentário, o eixo narrativo é a história de Mejigã que foi uma sacerdotisa da Orixá Oxum e como não seria possível entrevistar uma divindade, este elemento ganha dimensão simbólica.
– Quais mensagens você quis transmitir com o documentário?
– Um filme por si só não pode transformar os costumes sociais, mas a reflexão sobre o conteúdo exposto, sim. O documentário se constitui em um manifesto contemporâneo contra o apagamento de uma memória, a memória de Mejigã, em analogia a outras ancestrais negras e negros que não tiveram a oportunidade de fazer a escrita formal da sua história, pois foram escravizados e sofreram diversas tentativas de apagamento cultural.
A mensagem central é a de que a fé nos Orixás pode motivar seus filhos e filhas a vencer batalhas, gerando talvez empoderamento, pois o Candomblé existe hoje porque ancestrais nutridos dessa determinação resistiram e as suas memórias precisam ser reverenciadas como exemplos de superação. Além disso, um dos desdobramentos inerentes ao culto à Orixá Oxum é o auto-amor: só é possível enxergar beleza no outro depois de vislumbrar o belo em si. A discrimação racial com o fenótipo negro é uma herança das senzalas; e o meu convite, com o documentário, é refletir sobre como essa problemática ainda é viva nos dias atuais.
Paulo Roberto Ferreira Filho
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