Por Mathias Boni
A vitória de Joe Biden na eleição presidencial nos Estados Unidos traz consigo outro elemento histórico. Trata-se da vice-presidente Kamala Harris, que por ser negra e ter ascendência imigrante carrega uma série de simbolismos que serão colocados à prova a partir de janeiro de 2021.
Senadora pelo Estado da Califórnia, Harris foi a primeira mulher negra a compor uma chapa às eleições presidenciais estadunidenses, seja por Republicanos ou Democratas. É também apenas a quarta mulher na história dos Estados Unidos a participar de uma eleição como candidata a presidente ou vice pelos dois grandes partidos do país. E com a vitória de Biden, a senadora será a primeira mulher a ocupar a vice-presidência estadunidense.
Kamala Harris foi uma das pré-candidaturas a tentar unir o Partido Democrata em torno de um nome que fosse capaz de impedir a reeleição de Donald Trump. Embora a opção final tenha sido por Joe Biden, coube à senadora a indicação para o posto de vice. Sua simples presença na chapa democrata já servia como um recado a Trump e sua controversa e polêmica postura quanto à questão migratória no país.
A nova vice-presidente, que também exerce a função de presidente do Senado, também representa uma geração de cidadãos filhos de imigrantes, já nascidos nos Estados Unidos, que começa a ganhar cada vez mais protagonismo na política e na sociedade do país.
Família e identidade
Não é de agora que Kamala Harris, nascida na cidade californiana de Oakland, quebra paradigmas. Antes de sua histórica recente nomeação, ela também já havia sido a primeira mulher negra a ser Procuradora Distrital de San Francisco, posição que ocupou entre 2004 e 2011, e também a primeira Procuradora-Geral da Califórnia, onde ficou até 2016, quando foi eleita ao Senado. Como senadora, ela não foi a primeira, mas a segunda mulher negra eleita para tal cargo na história do país, depois de Carol Braun, senadora por Illinois entre 1993 e 1999. Filha de mãe Indiana, ela também foi a primeira estadunidense dessa origem a ocupar vaga no Senado.
Ambos os pais de Kamala Harris são imigrantes. Seu pai, Donald Harris, é um economista jamaicano que imigrou para os Estados Unidos nos anos 1960 para estudar na Universidade de Berkeley, e hoje é professor emérito da Universidade de Stanford. Sua mãe, indiana, era a cientista e pesquisadora Shyamala Gopalan, falecida em 2009, que também tinha estudado em Berkeley no mesmo período que Donald. Lá, ela conheceu o futuro pai de Kamala e sua irmã mais nova, Maya, em meio ao movimento pelos direitos civis.
Shyamala era muito apegada à sua cultura indiana, e desejava passar essa conexão às filhas, nascidas na Califórnia. Por isso, deu nomes em sânscrito para elas – Kamala, por exemplo, significa “flor de lótus”. Na sua visão, “culturas que idolatram deusas femininas produzem mulheres fortes. ” Logo em 1971, Donald e Shyamala se separaram, e a guarda de Kamala e Maya ficou com a mãe. Nessa época, a população dos Estados Unidos era formada basicamente por brancos e negros, e apenas 5% por imigrantes. Por isso, mesmo sendo originária de uma família tâmil, do sul da Índia, Shyamala priorizou criar suas filhas como meninas negras, pois sabia que seria assim que a sociedade estadunidense as perceberia.
Aos 12 anos, Kamala se mudou com a mãe e a irmã para Montreal, onde Shyamala havia aceitado um emprego como pesquisadora. No Canadá, como imigrante, Kamala viveu até seus 18 anos, quando se formou no high school. Depois da formatura, ela voltou para os Estados Unidos, e foi estudar Ciências Políticas e Economia na Howard University, em Washington DC, uma tradicional faculdade ligada à comunidade negra. Depois disso, ela finalmente voltou ao seu estado natal, ingressando na Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia, onde se formou em 1989. Em 1990, ela foi aprovada no exame de advocacia do estado, e, a partir desse momento, iniciou de vez sua carreira profissional.
O pai de Kamala, Donald, foi um economista de sucesso, e se aposentou em 1998 como professor emérito da Universidade de Stanford. Hoje, ele está com 82 anos. Sua irmã mais nova, Maya, também entrou para a política. Ela foi conselheira política sênior da campanha presidencial de 2016 de Hilary Clinton, e também trabalhou como presidente da campanha de sua irmã nesse ano. A mãe de Kamala, Shyamala, acabou morrendo em 2009, de câncer de colon. Em sua autobiografia, As Verdades Que Contamos, Kamala descreve sua relação com a mãe e a cultura indiana: “Minha mãe era muito orgulhosa de sua origem indiana, e ensinou a Maya e eu a também nos orgulharmos da nossa cultura. Nós costumávamos ir para a Índia a cada dois anos. Tenho muito orgulho de quem eu sou, e tenho orgulho das influências que a minha família tem na minha vida”.
Carreira pública até a indicação a vice
Em 2003, Kamala Harris foi eleita Procuradora Distrital de São Francisco, posição para a qual foi reeleita em 2007. Ela ocupou o cargo até 2010, quando foi eleita para ser Procuradora-Geral da Califórnia. Em 2009, a mídia estadunidense já a chamava de “Female Obama”, pois Kamala teve formação jurídica e também era filha de imigrantes – no caso de Obama, apenas seu pai, queniano, era estrangeiro. Como Procuradora-Geral, Harris foi reeleita em 2014, até que decidiu se candidatar ao Senado em 2016.
Em tópicos políticos importantes, como saúde pública e economia, Harris tem um posicionamento mais centrista no espectro político dos Estados Unidos, se assemelhando a Biden e se diferenciando de Bernie Sanders e até de Elizabeth Warren, por exemplo. No Senado, ela até defendeu o Obamacare e políticas que mitiguem as mudanças climáticas, mas sem ser muito incisiva. Como senadora, ela também defendeu políticas de descriminalização federal da canábis, restrição de armamentos pesados e reforma tributária.
Também enquanto senadora, Kamala Harris fez parte do grupo que se opunha a acordos entre o Brasil e os Estados Unidos por causa da precarização da preservação ambiental por parte do governo federal brasileiro. Em agosto do ano passado, ela chegou a fazer uma crítica direta a Jair Bolsonaro, quando publicou em seu twitter: “Enquanto a Amazônia queima, o presidente do Brasil, como Trump, que permitiu que madeireiros e mineradores destruíssem a terra, não está agindo. Trump não deve buscar um acordo comercial com o Brasil até que Bolsonaro reverta sua política catastrófica e resolva as queimadas. Precisamos de liderança para salvar nosso planeta”.
Em sua campanha como pré-candidata do partido democrata, Kamala Harris tentava se projetar ao público como uma candidata para agradar moderados e progressistas. Entretanto, tanto em São Francisco como durante sua carreira de Procuradora-Geral da Califórnia, Harris sempre teve sua atuação mais elogiada pela parcela conservadora da sociedade, justamente por ter uma atuação alinhada com a defesa da “lei e da ordem”. Autointitulada “Top Cop”, ela era criticada pelos progressistas principalmente por ser muito dura em crimes menores, atingindo assim uma parcela mais vulnerável da população, e intervir muito pouco em casos envolvendo assassinatos e outros abusos cometidos por policiais. Durante a primeira grande onda de manifestações do Black Lives Matter, em 2014, Harris teve sua atuação criticada pelos manifestantes. Durante as manifestações após o assassinato de George Floyd, essas críticas voltaram a ocorrer, por mais que ela tenha tinha maior participação dessa vez.
Angela Davis, filósofa e histórica ativista do movimento negro nos Estados Unidos, reconhece a legitimidade das críticas a Kamala Harris. Mesmo assim, mostrou satisfação com sua nomeação para candidata à vice-presidência. Após a confirmação, Davis declarou que “por mais que não possamos esquecer alguns problemas que estão associados à sua carreira como promotora, é uma abordagem feminista ser capaz de trabalhar com essas contradições, então posso dizer que estou muito animada”. Angela Davis, que foi ela própria candidata à vice-presidência dos Estados Unidos em 1980 e 1984, pelo Partido Comunista do país, ainda afirmou que a indicação de Kamala Harris como vice torna a candidatura de Biden “muito mais palatável”.
Na sua primeira declaração pública após ter sido confirmada como candidata, Kamala Harris alertou para a encruzilhada histórica em que se encontra a política dos Estados Unidos. Ela afirmou que “esse é um momento de grande consequência para a América. Está tudo em jogo. Os Estados Unidos estão precisando desesperadamente de liderança, mas temos um presidente que pensa mais nele do que no povo que o elegeu”.
Atuação em políticas públicas de imigração
Com uma carreira de destaque na Justiça e na Política, Kamala Harris também dedicou tempo especial para desenvolver políticas públicas de imigração. Quando estava em São Francisco, criou clínicas jurídicas para prestar assistência a imigrantes na cidade. Já como Procuradora-Geral da Califórnia, em 2014, ela ampliou essa política, quando teve que lidar com um fluxo excepcional de imigrantes que vieram da América Central.
Durante seu período como senadora, intensificou sua atuação na política migratória do país. Ela defendeu o uso de vistos humanitários para regular grandes fluxos de imigrantes, foi crítica das políticas de detenção do governo Trump, principalmente a separação de menores de seus responsáveis, e também foi defensora dos direitos dos Dreamers, imigrantes que chegam ainda crianças com os seus pais nos Estados Unidos, e que sofreram grande ataque a seus direitos no país nos últimos anos.
Pelo envolvimento pessoal de Kamala Harris com políticas de imigração, se os democratas forem eleitos, a vice-presidência do governo federal estadunidense pode desempenhar maior protagonismo nessa matéria. Ela já anunciou que pretenderia reverter imediatamente o Muslim Ban aplicado por Trump, bem como gostaria de incluir os imigrantes em programas de saúde pública. De qualquer forma, resta esperar para ver o verdadeiro impacto de Kamala Harris na política migratória de Biden, caso eleito.
Os significados da candidatura de Kamala
O fato é que, trazendo Kamala à sua chapa, Biden traz a pauta da imigração de volta para o centro das discussões nos Estados Unidos, sendo sua presença ali por si só já um contraponto à política e à retórica anti-imigração de Donald Trump. Uma prova do incômodo do republicano com Harris foi uma preconceituosa teoria da conspiração sobre a impossibilidade que Kamala concorrer que ele tentou incentivar, sem sucesso.
Outro ponto indiscutível da indicação de Kamala foi a estratégia de Biden de tentar angariar votos de uma parcela da população que cada vez mais relevante nas eleições, os imigrantes e seus descendentes diretos. Na disputa de novembro, eram 23 milhões de imigrantes espalhados por todos os estados aptos a votar, representando cerca de 10% de todo o eleitorado de todo o país.
O sucesso da trajetória de Harris representa a ascensão natural de filhos de famílias de imigrantes que chegaram nos EUA em meados do século XX. Esse fluxo histórico de imigração para os Estados Unidos foi incentivado principalmente pelo estabelecimento da Lei de Imigração e Nacionalidade de 1965, que reformulou a estrutura da política migratória do país e tornou possível a vinda de muito mais estrangeiros para os EUA.
A primeira geração dessas famílias veio para os Estados Unidos basicamente buscando, em um primeiro momento, se estabelecer e prosperar. A geração de Kamala já nasceu no território dos Estados Unidos, então se sente naturalmente estadunidense, mesmo com um ou os dois pais estrangeiros. Diferentemente dos pais, essa geração já se coloca lado a lado aos cidadãos de famílias mais “tradicionais”, buscando também uma participação ativa na vida pública do país.
Além disso, em muitos casos, essas pessoas também cresceram vendo seus pais, e mesmo eles próprios, passarem por momentos de discriminação e xenofobia. Desse modo, também são mais inclinados a ter um olhar mais sensível às políticas públicas que regulam a imigração.
Com a eleição democrata, Kamala Harris terá a chance de provar justamente isso. O limite de sua atuação, claro, dependerá também da direção que Joe Biden desejar dar para suas políticas públicas de imigração. Entretanto, como vice-presidente, ela teria a chance de redefinir a importância dessa pauta para o ocupante desse cargo de uma maneira sem precedentes. De qualquer forma, só de estar na posição de candidata à vice-presidência, Kamala Harris já fez história. Mais uma vez.