DANÇA
Este texto continua a minha coluna publicada na semana de 25/10/2020 em Pressenza. Tanto a anterior quanto esta versam sobre as obras apresentadas na Mostra Nordeste, a qual tive a grande honra de curar junto com Paula de Renor (PE) e Celso Curi (SP), integrante do 27º Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga, realizado entre 26/9 e 1/10/2020, todo ele no modo remoto. Corpo, presencialidade, dramaturgia expandida são temas da reflexão sobre o estatuto da cena nas plataformas digitais. A programação contava com dez obras que foram subdivididas no texto em três eixos: apresentação na íntegra de performances filmadas; adaptações de obras originariamente cênicas para as plataformas; proposições gestadas de saída para os suportes digitais. Desse último eixo, cabe-nos aqui comentar ainda três trabalhos e caminhar para um balanço final. (A imagem de capa é uma releitura do artista Simon Schubert da obra A reprodução proibida, obra de 1937 de René Magritte, que abria a coluna anterior.)
Das criações já remoto-digitais (continuação)
6 agentes conduzem 6 viajantes: a relação é 1/1 mas há uma comunidade de fundo entretanto insuspeita durante a primeira parte da travessia. O ano é 2045, vivemos em um mundo distópico e ele tem alguma relação com a data de 28 de outubro de 2018. Neste outro tempo, palavras caíram em desuso porque foram proibidas. Algumas tecnologias sociais também. É preciso retomar o uso de ferramentas obsoletas de comunicação como o WhatsApp e o Instagram que, de tão antigas, não são rastreáveis. Através delas seremos levados a embarcar na viagem clandestina para a qual reservamos secretamente o bilhete. A passagem, entretanto, não está de pronto assegurada: tudo depende de nossa desenvoltura em uma espécie de teste para o qual não há manual disponível, cujas regras perderam-se no tempo. As tomadas de decisão são todas muito urgentes. É importante levar consigo um disfarce. A atmosfera de risco e ameaça é constante.
Esse é mais ou menos o argumento de Clã_Destin@: Uma Viagem Cênico-Cibernética, obra imersiva, interativa, multiplataforma (60min de duração) do grupo Clowns de Shakespeare (RN), criada especialmente para esses tempos de confinamento, calcada, porém, em “mais de dez anos mergulhando no universo da América Latina, em seus festejos populares”, pesquisa apoiada inclusive pelo RUMOS Itaú Cultural. Sob a direção de Fernando Yamamoto, o(a)s intérpretes Camille Carvalho, Diogo Spinelli, Dudu Galvão, Nicoli Dichoff, Paula Queiroz e Rena Kaiser transformam-se em agentes cuja caracterização (belíssima) oblitera a identidade. Eles e elas são responsáveis por conduzir os seis supostos espectadores através da porta pequena demais ou grande demais de entrada no mundo da ficção. É essa chave que torna operativa a inteligente dramaturgia do trabalho (autoria também de Yamamoto): o tema é a própria engrenagem. Vive-se um tempo (2045 ou 2020?) no qual a palavra “alegria” foi extinta, a imaginação foi sequestrada e, com ela, a capacidade de fabular. Assim, no lugar da espectação há produção de expectação, bilhete necessário para que o embarque cumpra seu duplo sentido: ir a bordo e deixar-se iludir. Somos instados em nosso engajamento responsivo e responsável no jogo. Uma vez que nele tenhamos sido aceitos, chegaremos à plataforma Zoom onde partilharemos um comum. Viajantes (disfarçados) e agentes (mascarados) compõem entre si um pequeno clã cujo destino emula nas festividades, a utopia de uma latinoamérica justa, liberta e federada. Alegre, de novo. Nela podem dançar juntos a Macarena que emula no modo remoto a celebração de um “teatro possível”, diz o diretor, lugar onde a imaginação tomada de volta dos tempos sombrios o torna, então, um teatro do possível.
“Você imaginava um ano atrás que estaria vivendo isso que a gente tá vivendo agora?” Melhor dizendo, você consegue imaginar um blockbuster com 30min de duração no qual somente 12 pessoas (entre 6 performers e 6 participantes) são admitidas a cada vez? Pois é, tenho certeza de que o grupo teatral Magiluth (PE) não poderia supor, em 2019, o que lhe aconteceria apenas um ano depois. Desde a estreia de Tudo Que Coube Numa VHS (foto 3), em 7/5/2020, eles se tornaram a coqueluche da temporada, com cerca de 1.600 apresentações realizadas em quase todo o Brasil e outros 18 países. A urgência de criar um novo trabalho cuja execução não só atendesse às prerrogativas sanitárias recomendadas pela OMS, mas refletisse a condição de confinamento e criasse condições de encontro na reclusão, não denega a qualidade que sempre acompanha as obras do grupo em seus 15 anos de existência e pesquisa continuada. Agora, numa relação 1 a 1, importava, diz o diretor, “fazer conexão com aquela pessoa [o/a participante], não perdê-la neste vasto mundo das redes sociais que tá sempre lhe chamando para alguma coisa”. Giordano Castro, além da direção, assina também a dramaturgia e integra o grupo de seis performers junto com Bruno Parmera, Erivaldo Oliveira, Lucas Torres, Mário Sergio Cabral e Pedro Wagner. A solução inventiva e inteligente é uma excelente síntese do que pode a dramaturgia às expensas da presencialidade cênica; do que pode a criação artística, não apesar das restrições, mas com elas.
Não há nada para ver no sentido estrito da teatralidade. O experimento acontece em várias plataformas, mas WhastApp, Instagram, ligação telefônica, e-mail, YouTube e Deezer ou Spotify não são meros meios condutores. Como dizia MacLuhan, o meio é a própria mensagem. Assim, tudo começa desde o primeiro contato para aquisição do ingresso onde a relação um a um já se estabelece. Na melhor forma indie de promoção, conversamos no direct do Instagram, admitimos os dados bancários para depósito, voltamos a mensagem com o recibo e a partir daí entregamos alguns de nossos dados sociais para que o contato possa acontecer[1]. É um date, com dia e hora marcada, mas ele é blind porque a gente não sabe com quem, e melhor, o que é. Recebemos uma ligação telefônica e o que se segue a partir daí ainda procura o seu nome. Haverá trocas de mensagens em uma sequência dramatúrgica que encontra no fragmentário, o seu sentido. Executamos gestos conhecidos de idas e vindas entre plataformas sociais e obtemos justamente aquilo que esses próprios gestos cotidianamente obliteram. Assim, é de dentro dos próprios dispositivos que o trabalho consegue criar sua narrativa – uma contracaptura da distração que se tornou mais valor no capitalismo neoliberal disfarçado de redes (antis)sociais. Durante 30min, nós de fato prestamos atenção (isso é político, percebe?). O grupo define o trabalho como um “experimento sensorial em tempos de confinamento”. Eu diria que se trata de um experimento social. É também um date artístico (que privilégio!), porque aquela sessão em tempo real é única: foi feita estritamente por aquele performer com aquele(a) participante. Um imprinting acontece. Quando nos damos conta de termos encontrado nossa alma gêmea, ela esvanece entre pixels e algoritmos. Acaba o trabalho e somos (gentilmente) deixados ao abandono de algo absolutamente inédito que ali mesmo, onde menos se esperava, se construiu: um vínculo. Eu chorei baldes. Quem nunca?
10 atores e atrizes compõem o elenco de Fragmentos de um Teatro Decomposto (BA) (foto 4), o que para Marcio Meireles, diretor afeito à multidão, “equivale a um monólogo”. Como acontece com quase todo grande artista, a restrição, seja numérica, espaço-temporal ou de qualquer outro tipo, é oportunidade inteligente de composição. A encenação de 70min de duração é sofisticada, proveniente de longos estudos e experimentos do inquieto Meireles realizados muito antes do confinamento social acerca do que ele chama de Webteatro. Interessa-lhe “essa presença virtual do ator e do público” que “espalha na rede o tradicional lugar de onde se vê”, definição etimológica da palavra teatro. No processo de pesquisa e montagem, várias experiências foram tentadas, dentre elas o investimento mais direto na linguagem audiovisual, a montagem de cenas pré-gravadas, até mesmo o radioteatro. Todas elas foram abandonadas em favor da encenação digital em tempo real no Zoom, plataforma que não serve apenas de ferramenta. Também aqui, como em Tudo o Que Coube Numa VHS, mas em bitola estética completamente distinta, o meio é a mensagem.
O texto original do escritor e jornalista romeno/francês Matéi Visniec, intitulado Théâtre décomposé ou l’homme-poubelle (Teatro decomposto ou o homem lata de lixo, tradução de Alexandre David), escrito em francês e romeno e traduzido para 9 línguas, já oferece no resumo uma chave para a encenação digital de Meireles: “Os textos reunidos sob este título são na verdade blocos teatrais de montar.” Não se trata, entretanto, de um quebra-cabeça já que “o autor não impôs uma ordem específica”. Dele foram, então, extraídos 10 monólogos, um para cada intérprete, um para cada janela apartada e apertada do Zoom. Ananda Brasileiro, Anne Cardoso, Clara Torres, Clara Romariz, Loiá Fernandes, Meniky Marla, Rodrigo Lelis e Vick Nefertiti saem-se muitíssimo bem na tarefa empreendida pela Companhia Teatro dos Novos[2], fruto de sua excelente formação teatral na Universidade Livre[3] do Teatro Vila Velha, onde foram orientados pelos experientes Chica Carelli e Miguel Campelo que também integram o elenco. A disposição cênica afirma o apartamento de cada uma das 10 pessoas/personagens em relação às outras. Há comunicação entre eles, mas ela é intertextual: o contato se dá no território da palavra. Cabe a nós escutar e depreende-lo.
A frontalidade dos intérpretes em relação às suas câmeras e a dedicação esmerada de cada um(a) ao ato de falar tornam operativo o próprio Zoom. Fragmentos de um Teatro Decomposto usa a plataforma ao mesmo tempo em que a desusa quando dá à linguagem ali comumente professada, outro fim. Destaca-se o uso inteligente do delay (que, na rede, é de lei) abrindo temporalidade entre cada um dos fragmentos e espaçando, por rebote, a temporalidade interna de cada monólogo. A atmosfera é desolada e um tanto opressora, trazida já pelo texto denso, brutal, mas não menos poético, que, junto com a encenação, nos coloca não diante de um mundo distópico, mas pertencentes a ele. Ponto para outra intertextualidade do trabalho (o texto é de 1994), essa com a nossa circunstância social em plena pandemia pelo Covid-19, vigente neste tempo de depois do fim. Ainda antes do fim (da obra), entretanto, ela nos premia com um belo momento de evasão do olhar e da atenção quando somos conduzidos por um passeio pelas palavras em voz off do artigo Andando pela Paris deserta ou o mundo de Chirico (2020), também de Visniec, enquanto imagens evanescentes da cidade-luz sob severo lockdown nos são lenta e suavemente apresentadas.
“O que acontece hoje à espécie humana é algo enorme, grave, alucinante. Quando de uma cidade desaparecem os seus habitantes, a própria cidade começa a não fazer mais sentido. E as poucas pessoas que encontrei em vez de salvar a situação, não faziam senão aumentar a sensação de vazio, pois tinham algo fantasmagórico. É possível que os parisienses fechados nos seus apartamentos ainda não percebam a natureza apocalíptica do momento; seria necessário que cada um pudesse sair, pelo menos uma vez e atravessar a cidade deserta, para entender que estamos numa encruzilhada da civilização.”, diz de modo contundente o autor. Ao que Meireles, tornado agora minha personagem, responde de dentro de seu texto escrito para o programa do trabalho: “é preciso tornar este tempo em poesia para poder encontrar razões para seguir/é preciso perceber o que se passa enquanto passa/é preciso acreditar que o teatro só acontece aqui e agora/que não podemos esperar depois quando as coisas voltarem/as coisas não voltam as coisas seguem o tempo é e nós passamos”. Todos, todas e todes participantes do 27º Festival Nordestino de Teatro de Guaramiranga, assim como sua equipe organizadora, que cabe a nota é composta exclusivamente por bravas mulheres, parecem ter ouvido seu chamado apresentando cada qual suas perguntas ao tempo com formulações tão ricas, corajosas e diversas.
Há uma dramaturgia neofascista acontecente em nosso país que insiste em querer nos matar. Há uma contranarrativa, tão viral quanto vital, das artes vivas que insistem em não morrer. Será.
[1] Assim aconteceu a primeira temporada que catapultou as outras e as participações em festivais.
[2] Com mais de 60 anos de existência, a Companhia Teatro dos Novos foi fundada por uma dissidência da primeira turma da Escola de Teatro da UFBA (formação técnica) que contava com nada mais nada menos que o jovem Othon Bastos entre os revoltosos. Entre idas e vindas administrativas no decorrer de sua longa história, desde 1994, é dirigida por Marcio Meireles e tem sede no Teatro Vila Velha, em Salvador.
[3] Fundada em 2013, a Universidade Livre iniciou uma nova etapa da Companhia Teatro dos Novos que passou a formar novas gerações de artistas capazes de levar o grupo adiante. Trata-se de um programa pedagógico que inclui diversos fazeres técnicos e artísticos das artes do palco. Além de atuarem nas montagens da companhia (uma a cada ano, desde então), os integrantes também exercitam a cenografia, o figurino, a maquiagem, o som, a música, o vídeo, a gestão, a produção e a comunicação. E participam de experimentos produzidos a partir do trabalho com colaboradores de várias áreas da arte, através de oficinas. (Dados obtidos no site da escola)