MÚSICA

 

 

História da Música Italiana em dez capítulos, entre delírios e falsidades. Cap. 6

Jesahel, Jesahel. Acho que escorreguei feio na espuma de sabonete, bati a cabeça na quina e fechei os olhos. Jesahel Jesahel. Deitado no chão, água escorrendo, sonhei meus cabelos compridos até as costas, sonhei mãos, vestidos psicodélicos, percussão e flauta, boca de sino, coral, flores, Jehasel. Mas existe um limite. Não dá para destruir o banheiro inteiro gritando como um Pavarotti enfurecido, admito, não dá. Peço desculpas, senhoras e senhores, ensaboado estou, água pra cá água pra lá bravo bravíssimo in verità… gostaria de parar mas não consigo. Dizem que quando a obsessão te pega, é só pensar em outra coisa que seus tormentos esvanecem. Mas deve ser algo de feliz, leve, tranquilão, um pequeno toque na alma para acalmar meu corpo estraçalhado no chuveiro pelos Figaros da vida. Um toque singelo, um toquinho de felicidade. Um Toquinho abraçado a Vinicius, na orla de Itapuã, enquanto a tardinha cai e o barquinho vai; um Toquinho envolvente como a bossa, a velha bossa que, nova, novíssima foi aquele dia que ouvi sem entender direito o tamanho daquela beleza toda.

Acostumado com as marteladas do free jazz, os socos do blues, os instintos homicidas de toda a ópera itálica, com certeza não poderia compreender aquilo, a fundamental beleza das mulheres bonitas, a coisa mais linda que eu já vi passar, sua enorme ingratidão revelada na minha rolleiflex; não podia sequer imaginar o quanto era doce morrer nas ondas verdes do mar e de repente, não mais que de repente, ser salvo pela luz dos olhos teus… Foi ali, no chuveiro, muitos anos atrás, no tempo dos sonhos e de Jesahel, que o canto de Ossanha entrou definitivamente em mim, a tristeza que tinha feito moradia no meu coração, foi definitivamente embora. Estava voando pelo espaço-tempo do universo curvo de Einstein, estava sendo levado a lugar desconhecido, onde o perfil das montanhas espelha as sinuosidades da mulher amada; fechei os olhos e a princesinha do mar falou baixinho: a questo punto stiamo tanto bene io e te, nesse momento estamos tão bem eu e você, cerchiamo insieme tutto il bello dela vita, teremos juntos todo o melhor da vida, in un momento que non scappi tra le dita, em um momento que não escape entre os dedos.

Estava eu nas praias brasileiras cantando em italiano pela voz de Ornella Vanoni, ao lado de um poetinha camarada, sentado, banquinho e violão, onde cada amor é uma paixão pra fazer feliz a quem se ama. Ornella Vanoni trazia a bossa-nova pra mim, trazia o Brasil e seus encantos para o frio monumental do continente onde tudo já tinha sido feito; mostrava para mim o mundo impossível, e com um fio de voz dizia per sempre io ti amerò, eu sei que vou te amar.

Derretido, definitivamente conquistado por aquele mundo onde é melhor ser alegre que ser triste, porque a alegria é a melhor coisa que existe, eu, que vim de lá já adulto, cheguei, pisei nesse chão devagarinho e com Toquinho e Ornella presto minha homenagem ao poetinha: Vinicius, grazie, Saravá.

Jesahel, Jesahel, se todos fossem iguais a você, viver seria a maior das maravilhas, onde tudo faria sentido, onde o fim do caminho, o resto de toco, a febre terçã, se encaixariam sem o menor problema com a ave no céu, no chão e o fundo do poço; um lugar onde as águas de março e de beber nunca faltariam. Ivano Fossati, alma do rock e da canção autoral, explica que o Brasil não é do outro lado do oceano, o Brasil, de tudo que há na terra, não há nada em lugar nenhum como alí. Ivano Fossati, alma do rock feito de pó e pedra, diz que o Brasil está no desejo de cada um, o Brasil é la speranza di vita che porti con te, a promessa de vida no teu coração.

Jesahel, Jesahel. Deitado no chuveiro, água de março, de beber, de alagar o banheiro pra todo lado. Não quero acordar do sonho e então começo a lembrar dos meus cabelos, dos definitivamente tombados e daquele punhado que restou em ciranda ao redor da careca: careca carequinha vamos todos carecar, vamos dar a meia volta, só meia, porque o cabelo acabou. Lembro que tocava uma flauta endiabrada rodeado por outros cabeludos como eu, Jesahel Jesahel. Ivano fossati trouxe esse Brasil brasileiro pra mim e pra Itália inteira, mas também me presenteou com a força telúrica do rock, feita da dureza das ruas e da subjetividade exasperada. Cantava isso com grande compaixão pelas fraquezas das almas e dedicava sua canção mais famosa ai cattivi, che poi così cattivi non sono mai, às pessoas ruins, que no fundo não são tão ruins assim.

Levanto a duras penas do chão escorregadio, procuro restabelecer conexões com a realidade, com a música italiana que, quando colocada em mãos de artistas, chega a ser profética. Trinta anos antes que o Mediterrâneo começasse a se tornar um grande cemitério de prófugos em fugas da guerra e da fome, Ivano Fossati cantou a solidão e o desespero do migrante frente à surdez cósmica, onde, até Deus parece ter se esquecido dos seus filhos mais fracos. Chama Fratello, Irmão, quem agora é acusado de roubar o emprego e espalhar doenças, Mio fratello che guardi il mondo e il mondo non somiglia a te, meu irmão que olha o mundo, e o mundo não se parece com você, Mio fratello che guardi il cielo e il cielo non ti guarda, Meu irmão que olha o céu, mas o céu não olha pra você. Mas o poeta confia, o poeta sabe dos recursos infinitos de cada homem e cada mulher, dispostos a atravessar o mundo pelo simples fato de estarem vivos, pelo direito de viver. Diz o poeta que Se c’è una strada sotto il mare, prima o poi ci troverà, Se há um caminho no fundo do mar, ele vai nos encontrar. Ivano Fossati, músico, compositor, poeta, cantor da esperança universal, escreve seu verso mais lindo: Se non c’è una strada dentro il cuore degli altri, prima o poi si traccerà, Se não há um caminho dentro o coração dos outros, mais cedo ou mais tarde, ele vai se traçar.

Jesahel, Jesahel, e i miei capelli lunghi. Jesahel and I remember when a rock era jovem e eu também, e sonhava ser como ele, Ivano Fossati. Desci da moto, entrei no boteco, procurei o jukebox, botei a ficha que ainda não caiu. O rock, a Itália, e eu, entrávamos triunfantes no mundo das guitarras distorcidas, da música vinda do Soul e do Blues, filha de Chuck Berry e Bob Dylan. A obra-prima tocava para mim e depois de quatro décadas ainda está comigo. Sarà la musica che gira intorno, será a musica que gira à minha volta, quella che non ha futuro, aquela que não tem futuro, ou seremos nós que temos na cabeça esse maldito muro?

É a pergunta que me acompanha desde aquele dia, desde quando Ivano Fossati apareceu na TV pela primeira vez, com seu inacreditável grupo, Delirium, cabelo cabeleira cabeludo e descabelado, chutando o pau da barraca no Festival de Sanremo; e eu peguei minha moto, a flauta mágica, viajei pelo mundo, li todo Kerouac, cheguei ao Brasil de Ornella Vanoni, sonhei Pavarotti, cai no chuveiro e cantei Jesahel Jesahel.


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