MÚSICA
História da Música Italiana em dez capítulos, entre delírios e falsidades. Cap. 5
Coquetéis molotov, ovos podres e tomates; enquanto do outro lado, porrete e bombas de gás. Corre pra cá, corre pra lá, e no fim podia-se comemorar o assalto aos alicerces da sociedade burguesa. Não era o Palácio do Czar, mas o Teatro alla Scala, não era S. Petersburgo, mas Milão. Desde 1968 o pessoal se reunia na praça para xingar os “barões” e “coronéis”, para sujar de tinta, tomate e ovo podre os casacos de pele das madames. Não havia ocasião melhor: dia 7 de dezembro, o início da temporada lírica do mais importante teatro de ópera do mundo. E os mesmos ensandecidos, que destruíam o palco de Francesco De Gregori e Carlos Santana, dirigiam raiva e hortaliças não somente sobre a alta sociedade, mas também sobre a ópera em geral. A Ópera italiana, com O grande, assim ó, Ópera. Os malucos achavam que elite e ópera fossem uma coisa só. Santa ignorância que atravanca o progresso! Se tivessem lido meia página de qualquer livro sobre o assunto, se tivessem ouvido por dez minutos qualquer trecho daquela música, teriam percebido que a Ópera é a mais popular das expressões musicais da Cultura italiana. E digo Popular, com P, entendendo, com isso, sua origem como representação dramática musical de teatro total feita do povo para o povo, executada ao ar livre, nas praças, nos pequenos teatros de província. Ao longo de uma tradição de quinhentos anos, os assuntos tratados variam desde a mitologia grega, os mistérios religiosos até as tragédias de Shakespeare, os dramas de Victor Hugo; desde a representação das lutas pela liberdade das cidades medievais contra o imperador da Alemanha, até a guerra de libertação da Argélia do colonialismo francês. Na Ópera, o povo se espelhava e por ela expressava os sentimentos, amor, vingança, justiça. Considerar a Ópera como música feita para o deleite de poucas senhoras empetecadas é a maior falácia, o maior insulto que se possa fazer à tradição popular italiana. Seus maiores compositores estão por toda parte, monumentos, praças, avenidas, escolas, levam seu nome, Gioachino Rossini, Pietro Mascagni, Giacomo Puccini, Giuseppe V.E.R.D.I. Sim era dessa forma que os patriotas do século XIX escreviam seu nome nos panfletos que do alto do Teatro jogavam na plateia, logo após o agudo final da soprano. Viva V.E.R.D.I, e as tropas militares da ocupação austríaca, do império dos Habsburgos nada podiam fazer contra o entusiasmo do povo. Verdi, o autor das óperas era enaltecido por aplausos e gritos, Viva V.E.R.D.I.
Ignoravam o valor do acróstico, cada letra uma inicial de outra palavra. V-ittorio; E-manuele ; R-ei; D-a; I-tália. Viva VERDI, ou seja, viva Vittorio Emanuele Rei Da Itália. Era o tempo das lutas populares pela independência e pela unificação da Itália, sob a “batuta” do Rei da pequena região do Piemonte que se dispôs a ajudar os patriotas da Itália toda. E o Giuseppe Verdi, nas suas óperas colocava os vilões com semblante estrangeiro, nórdico, invasores, homens maus, violadores de mulheres… Eita, pessoal enjoado! Ignorante de sua própria história, achando que a música lírica fosse expressão da elite! A ópera é o grito de liberdade do povo italiano, capaz de inventar sua arte antes mesmo de existir como país! Meu avô, analfabeto, camponês, conhecia as óperas de cor, ouvidas em teatros mambembes, encenadas nas tábuas dos estábulos… E o pessoal jogando tomate como se fosse o início da revolução. A revolução tem nome e sobrenome e, principalmente, voz: Maria Callas. Quem nunca ouviu, pode imaginar a voz dela como a guitarra de Jimi Hendrix no festival de Woodstock. A força telúrica do mito de Medeia; Picasso pintando Guernica, o próprio grito de Guernica, o desconhecido revelado, mas nunca alcançado, arte em fazimento. Maria Callas é a voz que subverte a tradição usando o material do qual ela é feita, sua própria essência. Maria Callas. É o delírio do povo, é viva V.E.R.D.I. Única, irrepetível, Maria Callas.
Claro, no meu chuveiro, Maria Callas sono io! E vai com agudos de espantar o cachorro do vizinho! Mas não me basta. Na construção dramático-musical da ópera existem árias, como a que acabamos de ouvir; duetos, coros, quartetos, recitativos… Se fingir-se de Callas é bom, imaginem então ser Leo Nucci triunfando em Parma, cidade natal do próprio Verdi, quando o povo não aguenta tanta beleza e aplaude antes do fim.
Sí vendetta, tremenda vendetta, é um trecho da ópera Rigoletto, a história de uma vingança (vendetta) mal sucedida de um pai desesperado cuja filha foi desonrada pelo poderoso da vez, o duque da cidade de Mântua. Ele, o pai, o bobo da corte, decide vingar-se, apesar das invocações da filha. No final, quando o assassino de aluguel entrega o cadáver daquele que, segundo os planos, deveria ser o duque, Rigoletto percebe com assombro que o corpo sem vida aos seus pés é o da própria filha. Maria Callas, poucas linhas acima, interpretava uma entraîneuse de alto padrão que se apaixona por um rico cidadão de bem. Quer resistir à paixão, afirma que é uma mulher “sempre libera“, sempre livre, mas não consegue resistir. Morre doente dando o derradeiro suspiro entre os braços do amado. A ópera escancara as paixões humanas, nela, vilões, heróis, donzelas e mulheres altivas representam o ser humano em todas as suas facetas. Otello, chefe militar e político da ilha de Chipre, mata sua mulher por ciúme, insuflado pelo pérfido Iago de olho na carreira.
Se as óperas de Verdi são tragédias horríveis, as de Gioachino Rossini são comédias, óperas bufas. Trocas de casais, homens vestidos de mulher, mulheres de homens, amores conquistados e repelidos por equívocos dignos do melhor pastelão do cinema da porno-chanchada. Aqui, Maria Callas interpreta uma famosa aria do Barbeiro de Sevilha e avisa que “se mi toccano dove è il mio debole una vipera sarò“, cuidado aê homens, meus pretendentes, que se pisarem no meu calo, eu viro uma víbora. Apoteose garantida.
Foram muitos os grupos de rock que se inspiraram na magniloquência da linguagem da ópera. O Queen é o exemplo disso. O The Who com Tommy e Quadrophenia, também. O contesto é o rock, mas a construção dialética é descaradamente operística. Tito Schipa Jr, no começo dos anos setenta, escreveu a primeira opera-rock italiana. Filho do famoso tenor, escolhe a linguagem erudita para contar o mito de Orfeu. Chama os melhores músicos da época, o resultado foi realmente notável. Aqui vai a ouverture.
Certo dia, Sting, o ídolo do Police, depois de ter gravado a composição de Prokofiev, Pedro e o lobo, desceu o pau no rock, disse que era uma música simplória feita por embusteiros, colocando-se no rol, e admitindo a superioridade da linguagem operística sobre os sons ordinários da música que os jovens do mundo inteiro amam, incluídos os malucos que jogavam ovos podres na burguesia milanesa, achando que a ópera fosse a expressão da elite.
E eu, embebido de música e sabonete, em evidente status de alteração psicomotora, ignorando os protestos dos parentes nas proximidades, levado pelo meu espírito guerreiro, convoco os meus, todos, ali comigo no chuveiro, um aperto só, all’armi all’armi, às armas, às armas companheiros, o banheiro é nosso, o chuveiro é nosso, a eternidade é nossa, o aplauso das multidões, às armas, à armas, às armas… lançando meu coquetel molotov contra o mundo infame que recusa apreciar meu canto, escorrego miseramente, puxo a cortina e desmonto o box. Viva Verdi!