Assim a professora e pesquisadora Janaína Freitas Calado resumiu os dias de apagão no Amapá.

Ela descreveu um pouco da difícil experiência de passar dias sem fornecimento de energia elétrica, com destaques para o descaso do estado e a solidariedade do povo amapaense.

A população do Amapá sofre com a falta de energia elétrica desde a noite de terça-feira, 03 de novembro.

Dos 16 municípios do estado, 13 ficaram sem energia. O Amapá tem cerca de 860 mil habitantes. De acordo com o ministério das Minas e Energia, o apagão atingiu 85% da população, o que corresponde a 730 mil pessoas.

Nos primeiros dias de apagão, a população amapaense sofreu não só com a falta de energia, mas também com a falta d’água, pela impossibilidade de utilizar bombas elétricas para o abastecimento.

Pessoas enfrentaram longas filas para comprar água. Houve registros de até 300% de aumento no preço da água mineral. Passagens áreas e fluviais também tiveram preços elevados, em resposta à demanda para deixar o estado.

Com sensação térmica em torno dos 40 graus, o calor afetou crianças, adultos e pessoas idosas – com maior risco de desidratação. Além da saúde, economicamente as perdas também foram grandes. Comerciantes e famílias perderam alimentos devido à falta de refrigeração. O total de perdas ainda não foi estimado.

O que já se sabe é que a crise energética afetou principalmente as pessoas mais pobres. Sob a escuridão, reluziu a desigualdade social amapaense.

Ainda que na capital Macapá fosse um problema, às vezes sem solução, conseguir combustíveis e sacar dinheiro, em algumas comunidades ribeirinhas o apagão se traduziu em total isolamento. Sem combustível, não há embarcações circulando e populações estão isoladas. Sem água e alimentos.

A fim de atender essas populações mais vulneráveis, organizações e movimentos sociais iniciaram ações de solidariedade. ONGs, coletivos e vizinhanças arrecadam recursos para levar água potável e mantimentos às famílias isoladas ao longo dos rios da região.

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Amapaenses também se organizaram em protestos contra a falta de informação e de soluções por parte dos governos estadual e federal. No sábado, 07/11, foram registrados 20 pontos de protestos no estado.

No domingo, 08/11, a Companhia de Eletricidade do Amapá (CEA) informou funcionamento do rodízio de energia, alternando 6 horas para cada região. Segundo a CEA, no domingo cerca de 65% da capacidade do sistema elétrico fora restabelecida.

Pressenza conversou com a pesquisadora e professora da Universidade Estadual do Amapá – UEAP, Janaína Freitas Calado. Doutora em Ecologia e mãe de uma menina e um menino, ela descreve como foram esses dias de crise no fornecimento de energia do estado.

“A gente não sabia absolutamente de nada”

Janaína conversou com a gente sobre a falta de informação nos primeiros dias de apagão, descreveu o que chamou de onda de solidariedade, além de lembrar que a ineficiência energética no Amapá não vem de hoje. É um problema crônico.

– Como foram esses seis dias sem energia, com falta d’água e de outros itens de primeira necessidade?           

– Foi um caos. No início a gente achava que seria passageiro. E aí como a gente não tem informação. Não sabia se voltaria a energia, quando voltaria… Porque sem energia, a internet não funcionava e o sinal do celular pra acessar o 3G também não. Então, a gente não sabia absolutamente de nada. Essa angústia foi uma coisa muito difícil. Além do mais, se iniciou um processo de caos urbano do segundo pro terceiro dia.

As pessoas começaram a estocar gasolina. Quem tinha gerador, usava gerador. Quem tinha que sair de casa, precisava de gasolina pro carro. E só alguns postos tinham gerador para se manterem funcionando. Então, começou um caos por conta de gasolina. Começou um caos por conta de água, porque as pessoas começaram a estocar água mineral.

No terceiro dia acabou a água mineral praticamente em toda a cidade. A gente só tinha a água que tinha em casa. Como a companhia que abastece a cidade também precisa de energia, a gente estava sem água. Sem água nas torneiras. Sem ter como comprar água, porque a água tinha acabado.

“Escancarou de forma muito gritante a desigualdade social”

– Os hotéis da cidade ficaram lotados. Isso escancarou de forma muito gritante a desigualdade social em que a gente vive. Porque as pessoas ricas se refugiaram nos hotéis com geradores. Ou tinham geradores em casa. Ou tinham como comprar e estocar água. E a maioria da população ficou sem nada. Não tinha como comprar as coisas, porque tudo só comprava com dinheiro.

Na hora de sacar também, nem todos os bancos tinham geradores. Eram filas quilométricas pra gente conseguir gasolina e pra conseguir sacar dinheiro para comprar gasolina ou qualquer outra coisa.

A gente não tinha como guardar comida em casa porque estragava. Sem geladeira, sem nada a gente não tinha abastecimento de comida. A gente depende muito da geladeira.

– A temperatura está alta aí no Amapá?

– Altíssima! Um calor insuportável. Eu tenho dois filhos. Muita gente aqui com crianças. Pra eles dormiram bem, alguém tem que ficar abanando a noite inteira. E a gente sem conseguir dormir. Aqui na Amazônia vocês imaginam o quanto de inseto e mosquito que tem. É isso. Sai do calor, vai pra fora de casa pra ficar menos quente, aí é bombardeado por mosquitos. E dentro de casa fica imerso num calor insuportável.

– A situação já melhorou, né? Como está agora a situação de vocês no Amapá?

– Agora a gente está como a permanência do escancaramento da desigualdade social. Basicamente é isso. A energia voltou pra a maioria da população. Mas ainda está em rodízio. A gente recebeu pelas redes sociais uma tabela da companhia de energia, que mostra os bairros que ficam seis horas com energia e seis horas sem e como está sendo intercalado. Então, de uma maneira geral, a gente se programa. Porque tem informação. Então, tenho seis horas de água, vou armazenar água, vou organizar a energia. Sei a hora que vou poder dormir mais tranquila. Sei a hora que vou poder acordar.

Contudo, bairros periféricos não têm nada. Tem a energia que continua indo e vindo, mas eles não tem nada. Eles não tem acesso nem a água.

“Não enxerguei essa tendência de privilegiar”

– Você acha que há risco de certas regiões serem privilegiadas, durante o rodízio, pela Companhia de Energia do Amapá?

– Pelo que eu vi na tabela, não consegui enxergar esse padrão, não. Porque eles foram pelo número de pessoas que moram na região. As regiões mais populosas ficaram nessas seis horas de uma forma mais intensiva. Regiões menos populosas ficaram um pouco menos. E os municípios, de maneira geral, também estão em rodízio de seis em seis horas. Eu não enxerguei essa tendência de privilegiar, nesse sentido.

Mas eu enxergo que uma pessoa que não tem condições de comprar água mineral e se água mineral aumentou muito o preço, aliás não tem disponível… ou uma pessoa que não tem acesso a uma água minimamente potável, para pelo menos colocar hipoclorito de sódio, que é uma coisa comum aqui as pessoas tratarem a água com hipoclorito para beberem. Mas não tem nem essa água clara. A água que está vindo pra elas é água do rio, água barrenta pra elas beberem. Aí, sim, eu consigo ver de uma forma muito nítida, sabe? Porque aí, quem tem um pouco mais de acesso, um pouco mais de dinheiro, consegue mais recursos.

Auto-organização para distribuir água e alimentos a populações mais vulneráveis do estado. Foto: arquivo pessoal Janaína Calado.

“Houve um pequeno êxodo da população mais rica”

– Uma coisa que vi também é que houve um pequeno êxodo da população mais rica. As pessoas encheram os hotéis, começaram a receber as informações e viram que não voltaria a energia e foram embora. Então, as passagens de avião ficaram caríssimas. Pra sair daqui os barcos estavam cheios e caros também, porque não tinha combustível.

 

Teve gente que foi para as ilhas próximas, no Pará, que tinham energia, pro Afuá-PA, por exemplo. Teve gente que foi pra Belém do Pará. Mas quem consegue fazer isso? Quem consegue pagar uma passagem de avião que normalmente custa 200, 300 reais e estava mais de mil reais?

– A empresa privada Isolux é responsável pelos geradores incendiados. Além dos dois geradores danificados, um terceiro sobressalente para situações de emergência está em manutenção – desde 2019. O que este apagão do Amapá pode ensinar sobre privatização de serviços públicos?

– É um descaso tão escancarado… ‘Ah, foi uma raio que caiu e provocou um incêndio’. É a hipótese mais provável. Porque realmente, na noite que aconteceu, a gente teve uma chuva de raios. Raios e trovões por toda a cidade. Então é muito provável que tenha sido mesmo um raio. Contudo, na verdade, a informação que eu tenho é que o gerador que estava operando era o reserva. Os outros é que estavam em manutenção. Os que eram pra funcionar estavam quebrados. E o reserva era o único que existia. E isso há quase um ano.

“Tem a ver com o descaso do governo com a população”

– Então, uma empresa terceirizada que deveria realizar um trabalho de excelência, considerando que você está prestando um serviço e que a qualquer momento pode perder esse serviço, e considerando o que a gente passa no dia a dia… Porque apesar desse apagão ter sido o fim do mundo, horrível, o processo energético do Amapá é ridículo. É ridículo! Sempre foi.

A gente sempre sofreu com falta de energia aqui. As oscilações aqui sempre foram muito grandes. Não existe uma pessoa no Amapá que não perdeu um eletrodoméstico por conta de oscilações de energia. Já queimou geladeira, televisão… nas casas de muitas pessoas que a gente conhece. Na minha inclusive, por conta de sempre ter sido um serviço precário. Mas é um serviço precário que não tem a ver com o fato de a CEA ser do estado ou ser privatizada. Tem a ver com o descaso do governo com a população. Isso é um ponto. Eu, particularmente, sou totalmente contra a privatização da CEA ou de qualquer outra empresa do estado. Porque eu entendo que é dever do estado nos servir com uma boa qualidade.

Diante das dúvidas no gerenciamento da crise pelos governos estadual e federal, como está se organizando a sociedade amapaense? Você conhece ou participa de alguma ação de solidariedade para as populações mais vulneráveis?

“O mais bonito são os exemplos de solidariedade”

– De tudo que a gente viveu, o mais bonito são os exemplos de solidariedade que estão em todos os lugares. Em todos os âmbitos, sejam em organizações maiores, como ONGs, sejam em grupos de bairros que se juntam, sejam de vizinhos que pegaram água com quem tinha gerador.

A população inteira se mobilizou efetivamente pra se ajudar. Isso a gente viu muito. Um exemplo mais sistemático que está ocorrendo é da OELA, que é a Oficina de Luteria da Amazônia. Uma ONG com sede em Manaus, mas que atua no Amapá há vários anos com as populações ribeirinhas.

Porque pra gente aqui na cidade, as coisas foram melhorando um pouco com a volta da energia. Mas pra quem é ribeirinho, a único meio de eles terem acesso a qualquer coisa é com um barco. E um barco só funciona com gasolina. E gasolina estava rara.

“Se não tiver uma logística mínima para abastecê-los, não chega”

– Há uma dificuldade logística interna no estado do Amapá?

– Exatamente. A logística do povo ribeirinho é muito difícil. A gente trabalha na universidade e tem projetos nesses espaços. Pra gente fazer um campo de uma semana, é três vezes o custo de um outro campo pra uma cidade daqui. Porque é muita gasolina envolvida, diesel, óleo, pra gente conseguir chegar. E todo o abastecimento de comida dessas comunidades, com exceção da comida que eles consegue pegar – do açaí, do peixe que pegam do rio -, mas arroz, feijão, milho, cuscuz… todas essas coisas vem da cidade.

São produtos fornecidos pela cidade. Se não tiver uma logística mínima para abastecê-los, não chega. E é o que está acontecendo. Essas populações estão em uma situação muito mais vulnerável do que a gente aqui na cidade.

E a Oela está fazendo esse intercambio de juntar doações pra conseguir gasolina, conseguir cestas básicas e água potável pra essa galera.

“É um descaso tão grande, que é assustador”

– É muito engraçado o absurdo: a gente está na foz do maior rio do mundo, com a maior disponibilidade de água do planeta – e não tem água. A gente tem quatro hidrelétricas no estado, que fornecem energia pra todo o Brasil – e não tem energia. A gente está no meio do mundo, porque a linha do Equador passa aqui – é somos tratados como se estivéssemos no fim do mundo, porque é um descaso tão grande, que é assustador.

E aí, no meio disso, tem uma onda de solidariedade do povo daqui. Que apesar do descaso político para com a gente, tem um povo que é muito do bem e se ajuda, sabe?

Então, estamos aqui agora juntando água. Quem tem energia tentando fazer gelo, para que as populações das periferias tenham um pouco.

É um trabalho de formiguinha. Junta eu e três vizinhos e a gente consegue atender duas famílias. È melhor duas famílias bem do que ninguém. Junta mais outro vizinho e consegue atender outra família… E assim essa onda vai aumentando.