CRÔNICA

 

 

Os grandes olhos azuis de Rosa me acompanhavam com atenção desde o primeiro dia de aula. Era nossa professora de redação e a primeira a me apresentar a Vinícius de Moraes, a quem ela tinha imensa devoção.

Rosa não era alta, mas tinha corpo de atleta de natação, ombros largos e os cabelos bem curtos, grisalhos. Não era também nativa da língua portuguesa e tinha sobrenome estranho para nós: Herman. Quando se apresentou na sala de aula, com forte sotaque estrangeiro, duvidei que pudesse nos ensinar o idioma que nem ela parecia dominar. Olhei para os lados esperando confirmação dos colegas de classe. De onde ela vinha? Tinha certeza que era mais um erro daquela escola sem recursos no subúrbio de Marechal Hermes, no Rio. Além das infiltrações, das aulas de tecnologia sem computadores, do teatro sem palco, a escola sobrevivia precária e limitada a paralisações e greves, naquele fim do regime militar nos anos 80.

Ao ver seu nome na lista, com toda nossa crueldade adolescente, cantávamos “Secos e Molhados”, a “Rosa” radioativa, sem cheiro, sem cor, sem rosa, sem nada. Apelidamos professores e em especial os fiscais que circulavam nos corredores para garantir que estivéssemos em aula e não fumando no pátio ou namorando atrás das pilastras de concreto. Incontroláveis anos rebeldes, como nossos cabelos encaracolados, cheios de areia quando fugíamos para a praia, “ matando” aula e um pouco das nossas chances de um bom trabalho no futuro. Quem ligava para o futuro? Éramos na maioria condenados a repetir o trabalho precário de nossos pais e tios, morando todos da família no mesmo terreno.

Ela nos surpreendeu logo na primeira aula, desafiando um aluno no quadro negro, ao explicar o que eram advérbios: hoje, logo, primeiro, ontem, tarde, outrora, amanhã, cedo, dantes.  E assim foi a aula toda, desfilando nosso conhecimento. E aos poucos, ganhando meu respeito e admiração. Sabia todos os nomes de nossos escritores, títulos de livros e corrigia meus textos com caneta vermelha – “Olhe isso aqui, por que você repete tanto as palavras?  – Conhece a vírgula?

Os olhos azuis da mestre e seus cabelos loiros e grisalhos se sobressaíam naquele mar de cabeças negras e peles morenas. E ela circulava por toda escola substituindo professores de português que faltavam. Na sua ausência eu fazia a minha redação e ainda dava tempo para “vender” outras duas. Com os poucos trocados, comprava coca-cola e uma coxinha na cantina.

A venda de redações era devido a minha rapidez em escrever, mas só a primeira era bem escrita. As seguintes saíam cansadas, repetitivas, mas com mesmo estilo, o que gerou desconfiança.  Um dia ela me mostrou duas e disse: “Você escreveu isso, não foi?” Rosa havia aprendido a reconhecer os estilos de seus alunos e ao contrário do que se esperava, chamou-me para uma conversa – “Se você quer escrever bem, eu te ajudo, mas pare de fazer isso porque esses seus colegas sairão do curso sem saber escrever.”  E Rosa passou a me encontrar nos intervalos e após a aula, corrigindo e me orientando. Também aproveitava para desabafar: não dormia bem com tantos pernilongos, falava mal do Brasil e de meus planos de morar na Argentina depois do ensino médio. “Se é para imigrar, vá para um país rico, com oportunidades, de pobreza já basta aqui.”

“Tenho uma péssima notícia a te dar”, ela me disse um dia. “Você vai ser um escritor. Meu pai era um, sei reconhecer esse talento, mas ele morreu pobre e exilado.” “Escreva por prazer, mas tente uma profissão.”

Engoli seco e decepcionado. Ela era extremamente pragmática e fria, oscilando entre momentos de extrema sinceridade com pausas para falar.

A família Hermann havia fugido da Polônia ocupada pelos nazistas e encontrou abrigo no Brasil. Parte de seus parentes foram viver em um lugar distante, um enclave judeu em Nova Iorque.  “Meu pai escolheu ser escritor e olhe aqui pra mim, também apaixonada por escrever e ensinar”.  Não tem “futurrro”, dizia com seu forte sotaque.  Eu, de certa forma, segui seu conselho e de muitos outros que diziam que “escritor morre de fome no Brasil”.  Tudo que eu imaginava ser e fazer não tinha futuro, não dava dinheiro. Nos anos seguintes aos meus encontros didáticos com Rosa Hermann, enquanto amigos estudavam medicina, primas se dedicavam a engenharia e informática, eu insistia em escrever e sonhar em um dia publicar um livro.

Perdi contato com a professora Rosa Herman – a polonesa que me ensinou Português – mas soube que ela comeu suas próprias palavras e orientações e seguiu a trajetória do pai, publicando livros e se tornando uma referência para outros tantos estudantes por onde passava, geralmente escolas públicas de bairros distantes, periféricos e esquecidos.  Antes de morrer, nos anos 90, já era uma consagrada escritora de língua portuguesa e havia lançado alguns livros didáticos.  Sempre tive muito orgulho de ter sido seu favorito naqueles anos e que suas aulas e conselhos tenham me influenciado na busca por um texto melhor e na busca de um lar, mesmo que muito distante daquela escola e do lugar onde nasci.

Ela sabia que nosso caminho era inevitável, como eu me tornaria também imigrante em algum momento, curioso sobre a vida no estrangeiro e ansioso por me exilar. Rosa fez o papel genial de todo bom professor – jogou em mim uma semente, um desafio.

A arte de escrever é algo que desenvolvemos, aprimoramos – mas em muitos parece ser uma força interna incontrolável. Deve ser assim também com a música e pintura. Quando isso se junta ao exílio e a distância do que um dia chamamos lar, parece que as lembranças brotam mais fácil e que o afastamento apimenta nossa lembrança.

Por ironia do destino, trinta anos depois, daqueles anos famintos que vendia redações para fazer lanche, eu me vi sentado em um banco em Brighton Beach, em Nova iorque, onde os familiares de Rosa se exilaram e onde ela também sonhava em viver. É uma faixa de areia cercada por casas e prédios antigos, lojinhas e mercados, com maioria de russos e outros imigrantes da antiga URSS, como Geórgia e Azerbaijão. Muitos a chamam também “pequena Odessa”, em referência a uma cidade na Ucrânia.

Eu me lembrei da família Herman quando cheguei numa manhã quente de agosto, das andanças pelas ruas, do cheiro único e indescritível das estações de metrô. O caminho até o Lower East side, que de gerações e gerações abriga levas de imigrantes. Primeiro foram as ondas de italianos, depois chineses, espanhóis e por último os latino-americanos, que como eu, chegavam para encontrar uma saída e justificar aquela frase bonita na base da estátua da liberdade – Que venham os que fogem de guerras coletivas e pessoais, que venham os que só querem um pouco dessa energia que flui como aquele feixe de luz.

O escritor francês Marcel Proust já disse que a real viagem da descoberta não consiste apenas em lugares novos, mas em passar a ver com outros olhos. Para quem já viveu o afastamento de sua terra, há para sempre um sentimento de busca por um lar. Depois que deixamos o lugar onde nascemos e tivemos infância, passamos a viver em um limbo – já não somos mais de onde viemos e também não pertencemos plenamente ao lugar que adotamos. Quase todo imigrante já tem essa sensação de não-pertencimento. Afinal, onde é que fica o conceito de “lar” para quem é nômade e exilado ?

Rosa mudou o meu olhar – mesmo no seu pessimismo e nas canetadas vermelhas em meu texto. Ela era a própria inspiração por ser imigrante, desafiar e ensinar um idioma que não era nativo de sua educação, deixar uma vida confortável para ir ao subúrbio ensinar jovens a escrever melhor e contar sua histórias. Graças a ela hoje sei que todos temos histórias para contar. Rosa me ajudou a entender que somos mosaico, cujo lar não é mais físico. O lar somos nós mesmos. E escrever é um ato de rebeldia, que nos leva ao paraíso.