Os setores populares da Bolívia deram uma nova lição ao mundo. O triunfo esmagador do Movimento pelo Socialismo – Instrumento Político pela Soberania dos Povos (MAS-IPSP) não deixa dúvidas sobre a vontade da grande maioria da população.

As difíceis circunstâncias em que ocorreu esta eleição realçam a bravura dos que não se deixaram amedrontar. Diante da intimidação e da agressão, os bolivianos e as bolivianas responderam com dignidade e convicção à perseguição e às prisões de caráter político, às graves violações dos direitos humanos. Não recuaram nem cederam diante da pressão para recuperar a democracia.

É preciso recordar os adiamentos sucessivos da eleição que, finalmente, realizou-se graças à coragem na mobilização ativa das comunidades e à firmeza de lideranças e parlamentares que impediram que o regime de facto se perpetuasse no poder.

Apesar do controle desastroso da pandemia demonstrado pelo governo que, em poucos meses, encontrou-se em meio a graves casos de corrupção, as e os bolivianos foram às urnas, tranqüilos e conscientes de que tinham nas mãos o seu destino.

A grande diferença de mais de 20 pontos percentuais com que a chapa de Luis Arce y David Choquehuanca ganhou da segunda, de Carlos Mesa, representante do neoliberalismo e das ambições de re-colonização estrangeira, tem um duplo efeito.

Por uma parte, dissipa toda dúvida sobre o caráter de golpe de Estado dado em novembro baseando-se em uma acusação de fraude inexistente. Golpe que leva o carimbo de conspiração do Departamento de Estado dos Estados Unidos através do seu braço de controle “hemisférico”, a Organização dos Estados Americanos (OEA) e seu secretário geral.

Golpes cujas responsabilidades também dizem respeito a setores do poder econômico – particularmente, aos ligados à oligarquia cruceña (em referência à cidade de Santa Cruz) – e às transnacionais com interesses nos recursos naturais nacionalizados. Golpe que teve como partícipes necessários os meios de comunicação privados (propriedades dos mesmos conglomerados ou trans-nacionalizados), as igrejas católicas e pentecostais e também muitas organizações não governamentais euro-dependentes, despojadas da sua função assistencial pelas políticas públicas do governo revolucionário de Evo Morales. Golpe no qual a responsabilidade direta recaiu sobre os altos escalões das Forças Armadas e da Polícia, um assunto de relevância estratégica que o novo governo de Arce seguramente deverá enfrentar.

Por outro lado, a vitória indiscutível obra o milagre de dificultar qualquer maquinação de fraude eleitoral – esta vez sim altamente possível, já que o aparato institucional está em mãos de um regime de facto – ou a reedição violenta do golpe, nesse caso, que corta pela raiz toda aparência de legalidade ou de legitimidade.

Embora as sombras sinistras da resistência a entregar o poder político poderiam ainda estar pairando sobre a mente de um ou outro agente estrangeiro, funcionário ou militar, os pronunciamentos públicos têm sido praticamente unânimes em validar a vontade expressa do povo, o que fecha o caminho para possíveis aventuras desesperadas da direita.

As razões do triunfo

O desgoverno de facto fez tudo que estava ao seu alcance para se sepultar. A obrigação contraída com as forças que moviam seus pauzinhos fez com que, em poucos meses, pretendessem desmantelar rapidamente a construção do Proceso de Cambio, principalmente, no aspecto econômico e geopolítico. E essa foi a sua perdição.

O racismo manifesto que a gestão de Áñez destilou tocou fundo o nervo histórico da comunidade de nações que conseguiram respeito, um grau importante de autodeterminação e valorização cultural e social depois de séculos. Diante disso, elevou-se o clamor profundo da rebeldia em resposta à violência instalada, conseguindo consolidar novamente a unidade que já havia começado a desmoronar no último período de governo da Revolução Democrática e Cultural.

Ao mesmo tempo, a imagem de Arce, principal responsável pela implementação do crescimento econômico, acompanhado por Evo Morales como responsável político, projetou a possibilidade de conseguir uma nova estabilidade no meio da tempestade da pandemia e do futuro incerto.

Por outra parte, a fórmula de substituição e de unidade foi um grande acerto, a única tática possível diante do ostracismo e da perseguição contra o líder histórico. A mesma estratégia foi testada no Brasil com Fernando Haddad, na Argentina de maneira exitosa com Alberto Fernández e é a perspectiva que mobiliza a reconstrução de um bloco progressista no Equador através da candidatura de Andrés Aráuz.

No caso boliviano, a vice-presidência de um dirigente indígena do porte histórico de David Choquehuanca acompanhando a Arce simboliza, uma vez mais, a tentativa de unir as duas vertentes do Proceso de Cambio, a visão do Buen Vivir e a desenvolvimentista de esquerda, sob o objetivo comum que é a soberania do povo frente a um adversário perigoso e desalmado.

Porém, independentemente dos argumentos da conjuntura, os 53% ou mais de votos por Lucho Arce representam um agradecimento ao Proceso de Cambio liderado por Evo Morales Ayma. Um período de quase catorze anos no qual se efetuou um curso de desenvolvimento econômico com base na recuperação dos recursos naturais para gerar melhoras sociais inéditas em quanto à redução da pobreza, eliminação do analfabetismo, acesso à saúde e à educação de maneira universal, proteção da melhor idade e da infância, entre muitas mais.

Junto às conquistas sociais, o Proceso de Cambio gerou mudanças inovadoras e revolucionárias no imaginário e na prática política. No contexto estrutural de uma sociedade plutocrática e racista, conseguiu tornar evidente um mundo que deseja nascer e abrir caminho à multiculturalidade e à pluralidade, em oposição ao outro decadente e moribundo, que apenas favorece um grupo de supremacistas privilegiados, herdeiros da colônia.

O Proceso de Cambio, rumo que a Bolívia retomará agora em um novo ciclo criativo, possibilitou a aparição das culturas ignoradas e reprimidas durante séculos, dando-lhes protagonismo político e dignidade identitária, promoveu a crescente participação e os direitos das mulheres, suplantou uma institucionalidade republicana excludente e a converteu em democracia participativa.

Com seu voto, as e os bolivianos valorizaram a Nova Constituição Política alcançada com enorme esforço em 2009, que torna efetiva uma nova visão do Estado, pluricultural e plurinacional, laico, pacifista, humanista, dessa maneira, resgatando reivindicações e consagrando novos direitos para todos os setores sociais que estavam em segundo plano.

É um voto necessário, justo e historicamente consciente.

O significado da vitória popular para a América Latina e o Caribe

Uma vez mais, a unidade dos setores carentes foi capaz de derrotar com ampla margem a mesquinharia dos opulentos. Assim como sucedeu com as primárias na Argentina, os resultados excederam largamente as projeções das pesquisas eleitorais. Apesar das diretrizes do Norte, que obrigaram Áñez a desistir da sua candidatura e da irrelevância de Tuto Quiroga, que fez o mesmo, a direita concorreu dividida. Isso reitera um antecedente evidente. Em tempos conturbados e de fragmentação, a unidade do campo popular é imprescindível, ainda que apresente certas contradições.

Os espíritos emancipadores do Caribe e da América Latina aceitaram o desfecho eleitoral com esperança e, finalmente, com alívio e alegria, já vislumbrando a possibilidade de reforçar o bloco dos países como México, Venezuela, Argentina, Cuba, Nicarágua e várias outras nações do Caribe, que defendem a integração, a soberania e a solidariedade entre os povos como insígnia.

Sem dúvida alguma, com a presidência de Arce, abre-se a possibilidade de reativar o caminho rumo à unidade sul-americana através de uma versão talvez reduzida de UNASUR (União de Nações Sul-Americanas) que, com o tempo e com a reversão da relação de forças políticas no Equador, Chile, Colômbia ou Brasil, possa completar-se, esta vez com uma maior inserção das forças vivas da sociedade civil.

No curto prazo, a Bolívia certamente voltará a unir-se ao ALBA (Aliança Bolivariana para os Povos da Nossa América) e fortalecerá o trabalho que López Obrador vem realizando na CELAC (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos) Da mesma maneira, ao construir um eixo com o governo argentino, melhorará a versão atual novamente neoliberal do MERCOSUR.

É muito importante enfatizar que a subida de Luis Arce à presidencia enfraquece o Grupo de Lima e a posição belicista e intervencionista dos Estados Unidos na região e aporta uma atitude importantíssima em defesa da paz como bem inestimável e conquista comum.

A missão: Melhorar

No início da sua gestão como presidente, Arce terá que atuar para responder às urgências. A pandemia, o desemprego e o desastre que o desgoverno golpista deixa como legado não permitem um campo de ação para outras prioridades. O primeiro passo será redirecionar o esforço no sentido da proteção do povo e confirmar a certeza de que novamente se está recorrendo um bom caminho.

Contudo, após um período repleto de ódio, vingança e ressentimento, não somente será necessário cicatrizar as feridas do corpo, mas também tentar curar as feridas da alma. Por isso, o novo governo tentará estabelecer pontes com os vários setores utilizando mensagens de conciliação no âmbito da fortaleza política que a maioria recebida no executivo e em ambas as câmaras legislativas lhe outorga.

Todavia, em termos de projeção transformadora, o que significa melhorar? Será suficiente com avançar na transformação da matriz produtiva extrativa? Ou com a desburocratização e descentralização comunitária da revolução?

O primeiro ciclo de catorze anos do Proceso de Cambio superou por muito o mandato da Agenda de Outubro de 2003 no que respeita a dívida de séculos para com o povo que o modelo de espoliação neoliberal prolongou e aprofundou.

Ainda que a dívida pelo desperdício esteja muito longe de ter sido completamente liquidada, qual é a nova pauta para melhorar? Qual é a maneira de conectar as novas sensibilidades jovens emergentes, cujas visões se formaram neste século, muitas delas durante o contexto da revolução?

Obviamente, a revolução, enquanto transformação profunda de estruturas sócio-econômicas e mentais, representa a única saída para a decadência que gera o reflexo de um modelo social ultrapassado. Porém, é possível que as novas revoluções no momento histórico atual estejam demandando a inclusão de novos tópicos e um aprofundamento da mudança educativa cultural que favoreçam o entendimento de que toda construção social requer partir do ser humano como preocupação central e da intencionalidade humana como característica constitutiva de todo sentido social evolutivo.

O Proceso de Cambio tornou visíveis as maiorias e lhes implementou direitos, o que gerou conquistas para a superação da marginalização e promoveu a valorização de suas próprias culturas e da sua diferença. Será possível dar agora um passo mais em direção à convergência consciente dos distintos mundos culturais, sem que abram mão da sua identidade? Será possível encarar a própria cultura em um sentido dinâmico, no que cada uma tende a transformar-se ao conservar seus melhores atributos? Olhando com muita atenção, em um mundo interconectado como o atual, essa identidade civilizatória em processo de síntese é muito mais próxima do que se pensa. Na Bolívia e em toda parte.

Do ponto de vista humanista, o objetivo comum desta nova pauta deve ter como horizonte supremo a superação de toda forma de violência, discriminação e exclusão, não apenas a nível social, mas também a nível cotidiano interpessoal e na atitude individual.

Então, poderá surgir o novo ser humano, espécie tão esperada pelos revolucionários de todos os tempos? Isto só será possível caso se atenda, de maneira simultânea, à mudança social e também ao desenvolvimento interior, resgatando o que é realmente essencial de cada cultura, suas experiências profundas, para que se expresse uma nova sintonia entre os seres humanos e entre o ser humano e o seu entorno.

Possivelmente assim, seremos melhores. Não é de revolucionários contentar-se com menos.


Traduzido do espanhol por Graça Pinheiro