CINEMA
O cinema de Geraldo Sarno sempre orbitou em torno de determinados temas, tais como, o sertão nordestino, os retirantes e sua busca por uma vida melhor, a cultura popular, a religiosidade etc. Dentro desse universo, pelo menos dois de seus filmes são obrigatórios para quem deseja entender o Brasil, o documentário de média-metragem Viramundo (1965) e o longa-metragem de ficção Coronel Delmiro Gouveia (1977). Recentemente, Sarno nos brindou com mais um filme “obrigatório”. Sertânia (2019) é uma das obras mais vigorosas do cinema brasileiro contemporâneo, com um arrojo estético e temático raro nos dias de hoje. O pensamento pulsa através das imagens durante os noventa e sete minutos do filme. É estimulante, mas ao mesmo tempo preocupante, constatar que dois cineastas octogenários encarnam o que há de mais ousado no cinema brasileiro atual (veja a resenha sobre Aos Pedaços, último filme de Ruy Guerra, publicada em 20/09).
Sertânia é, em certa medida, um acerto de contas do Cinema Novo com o Brasil de hoje. Vários elementos que caracterizam os ícones do Cinema Novo estão presentes: o cangaço, o sertão, a fome, a miséria, a violência, a cultura popular, a religiosidade desvairada, a literatura de cordel, a literatura modernista e por aí vai. O filme não escamoteia em nenhum momento suas referências, pelo contrário, elas são explícitas, inclusive esteticamente, com a câmera na mão, o uso do preto e branco e um tom alto, arrebatado. Os Fuzis (1964), de Ruy Guerra; Vidas Secas (1963), de Nelson Pereira dos Santos; Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) e O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro (1969), de Glauber Rocha; A Hora e a vez de Augusto Matraga (1965), de Roberto Santos; assim como o próprio Viramundo, de Sarno são revisitados. Mas não se trata nem de meras lembranças, nem de fantasmas do Cinema Novo, nem mesmo do resgate de personagens interessantes do passado. Sertânia atualiza as referências frente a um Brasil que assiste ao esgotamento da Nova República, provocando outras reverberações, se construindo como uma obra absolutamente atual, que se sustenta por si só.
Ao retratar a agonia de morte do cangaceiro Antão (Vertin Moura) no sertão baiano, no início do século XX, o filme expõe o desassossego do Brasil vigente. Antão busca voltar pra casa (sem saber ao certo que lugar é esse), questiona a venerada mãe (Kécia Prado) sobre o destino do pai (executado pelo exército durante a campanha em Canudos), ao mesmo tempo em que idealiza a figura paterna na relação com o capitão do cangaço Jesuíno (Júlio Adrião). No meio desse turbilhão ele tenta se encontrar, sem conseguir, no entanto, pertencer a lugar nenhum (“eu só queria voltar para casa” são suas últimas palavras). Um sertanejo nordestino, um retirante em São Paulo, um cangaceiro, um militar, ave de rapina e serpente. A busca pela identidade de Antão se confunde com a busca pela identidade do Brasil. Canudos, a República, o processo de industrialização, a repressão à greve geral de 1917, Lampião e seu bando, tudo se funde na efígie de um Brasil confuso, violento, injusto, desigual e, especialmente, alienado. Sarno, em todos os seus filmes, sempre fez questão de ressaltar que a realidade da miséria nordestina e a modernização do Sudeste são uma única e mesma face. A identidade do Brasil passa por essa discussão de sua formação estrutural, não adianta o paliativo de representações e discursos purgativos, não há como fugir das raízes e, apesar das transformações pelas quais a sociedade brasileira passou ao longo das ultimas décadas, as raízes continuam profundamente fincadas na violência, na desigualdade e na injustiça, com as peculiaridades do sertão ainda funcionando como uma das principais alegorias dessa estrutura. E Sertânia aborda essa questão de maneira fascinante. Com uma estética acurada, flertando o tempo todo com experimentações, mas sempre atrelada ao conceito do filme. Nada soa gratuito.
A câmera, sempre viva, errática, acompanha o personagem de perto, expondo a desorientação de Antão que é, também, a desorientação do Brasil. A fotografia (Miguel Vassy), em um preto e branco “lavado”, tem a luz sempre estourada, com a presença quase constante de uma contra-luz, na maioria das vezes o sol, cegando a visão. A cegueira e a visão têm um papel central no filme. Conseguir ver o mundo, conseguir ver o outro. Cangaceiros e militares, em determinadas passagens, reclamam da cegueira e se matam mutuamente. O Brasil está cego, é urgente a necessidade do ver, para além do enxergar. A comoção do cangaceiro Jesuíno com a menina cega, surda e muda (“que nunca verá o rosto da mãe”), nos é mostrada através do olhar de Antão. Ver o outro é imprescindível, ver pelo olhar do outro é primordial. A história é contada a partir do olhar subjetivo de Antão, mas em certos momentos, a câmera subjetiva se transforma em objetiva, evidenciando a inter-relação entre os olhares. O recurso da metalinguagem, por exemplo, na aparição da equipe de filmagem por trás dos atores; no momento em que o fuzil de Jesuíno emperra e Júlio Adrião sai do personagem ao se dirigir ao armeiro, desconstruindo a postura, o tom, o sotaque numa fração de segundo (revelando toda a excelência de Júlio como ator); nos rostos que olham diretamente para a câmera, mais do que nos surpreender e nos lembrar de que se trata de um filme (uma máquina de visão), nos impõe o desconforto de um Brasil que precisa se ver.
A narrativa, totalmente elíptica, transita entre diferentes tempos e, em certa passagem, entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, mas graças a uma montagem (Sarno e Renato Vallone) muito precisa, em nenhum momento ela é confusa, com os diversos tempos e espaços fluindo dentro da proposta do filme. A sequência da agonia de Antão é repetida diversas vezes, remetendo, em cada vez, a situações diferentes, ao mesmo tempo balizando a narrativa e saturando os elementos, rechaçando qualquer tipo de naturalismo. Antão, ferido de morte, cai na terra e rasteja, a câmera o acompanha rente ao chão, ele não é mais Jararaca, nem Gavião, Antão habita uma zona de indiscernibilidade, nem vivo, nem morto, nem humano, nem animal. Ele se torna um vidente, um profeta (figura tão presente no Nordeste) e nos apresenta suas visões que, da mesma forma, não são nem lembranças, nem reminiscências, nem mesmo alucinações, mas uma narrativa com ares de fábula, que singra Antão e sua história. Não há certezas, nem soluções fáceis, as situações e os personagens carregam uma ambiguidade originária. O plano da “Santa Ceia” é exemplar. Os senhores da vida e da morte no sertão, sentados à mesa como Jesus e seus apóstolos, possibilita uma leitura dupla: os tiranos posam como santos, ou os santos não passam de déspotas. E é por intermédio da ambivalência que o filme se ergue e se sustenta como obra, para além dos (interessantes) discursos que o permeiam (o psicológico, o histórico, o político).
Certos planos são, simplesmente, encantadores, movendo-se entre a pintura e a fotografia e demonstrando uma incrível capacidade de síntese (a reza para a santa, os remanescentes de Canudos rendidos frente ao exército, as mulheres na frente de casa etc.). Sertânia se expressa nesse grande poder de síntese, que, talvez, só o cinema, quando feito com talento, consegue exprimir. Síntese do Brasil, síntese do Cinema Novo, preservando sempre o aberto e o incômodo, evitando a deificação e a catarse fácil.
Pouco antes de ser baleado, Antão, no meio dos famintos que serão executados pelos cangaceiros de Jesuíno, “comprados” pelos latifundiários, tem uma espécie de revelação e Sarno fala através da voz do personagem: “O povo é inocente!” Em todos os seus filmes, Sarno nunca fugiu de assumir sua posição política, não seria em Sertânia que isso aconteceria. Mas mesmo uma afirmação tão contundente, no contexto do filme também pode soar ambígua. Na sequência final o acerto de contas com o Brasil atual é direto, ao mostrar uma festa junina no interior da Bahia, em 2018. A câmera, mais uma vez, passeia pelos rostos. Talvez, se possa entender o brado “o povo é inocente”, para além de, simplesmente, não ter culpa, pois inocente também quer dizer passivo, inócuo, inofensivo. Como entoa a puxadora da quadrilha junina: “Apesar dos problemas somos todos brasileiros!” “Viva o Brasil!”