…mas o Programa Mundial de Alimentos não pode edificar a paz sozinho
Ao conceder o Prêmio Nobel da Paz ao Programa Mundial de Alimentos (PMA) da ONU, o comitê do Nobel disse que queria “voltar os olhos do mundo para as milhões de pessoas que passam fome ou enfrentam sua ameaça”. Entre as razões para a atribuição do prêmio estavam “os esforços do PMA para prevenir o uso da fome como arma de guerra e de conflito”.
Essas questões não se aplicam apenas às pessoas que vivem em áreas de conflito agudo, mas também a muitas ao redor do mundo que têm vivenciado altos níveis de desnutrição por décadas – geralmente em países afetados por múltiplas crises políticas e de longo prazo, como Somália, Sudão, Sudão do Sul, República Democrática do Congo e Iêmen.
O foco que o comitê do Nobel trouxe para a fome e para o conflito é bem-vindo e muito necessário. Deve ser tratado com urgência – mas não apenas pelo PMA.
Fome como arma
A fome tem sido usada como arma de guerra há muitos anos, mas a questão ganhou destaque recentemente devido ao aumento do risco de fome em massa nos conflitos atuais.
Os atos políticos que causam fome e inanição podem ser divididos em atos de comissão, omissão e provisão. Os atos de comissão são ataques à produção de alimentos, aos mercados e à restrição do movimento popular. Omissão é a negligência da ação, como quando o auxílio alimentar é bloqueado, enquanto provisão é o provimento seletivo de ajuda a um lado de um conflito.
Táticas similares são usadas em crises prolongadas, mas com manipulação mais sutil dos mercados, do comércio e de ajuda do que com ataques diretos. A guerra contra o terrorismo, o aumento de governos autoritários e as manobras geopolíticas ampliaram essas questões e aumentaram o risco da fome.
A ligação entre a guerra e a fome foi reconhecida explicitamente com a aprovação de uma resolução do conselho de segurança da ONU em 2018 que proibia o uso da fome como arma de guerra. Desde então, o PMA tem trabalhado mais ativamente para entender a ligação entre segurança alimentar e conflito e como isso pode contribuir para a construção da paz.
O poder da ajuda alimentícia
Desde seu estabelecimento em 1961, o PMA tem construído um amplo sistema de logística de alimentos e uma grande variedade de ferramentas para avaliar necessidades e vulnerabilidade. Na última década, também se envolveu em transferência de dinheiro.
Ele é hoje uma das maiores organizações humanitárias do mundo, mas também um negócio que domina todos os aspectos da distribuição geral de alimentos e da assistência humanitária. Isso envolve um grande alcance de pessoas, instituições e práticas que podem ter consequências políticas e econômicas muito além de atender às necessidades das pessoas famintas.
Uma das questões mais intratáveis é a manipulação da ajuda alimentícia durante conflitos e sua incorporação à economia política da fome e da guerra. A ajuda alimentícia tem sido roubada ou tributada por partidos hostis ou autoridades locais, provendo não apenas uma fonte de financiamento, mas impulsionando seus status político.
Na Somália, a ajuda alimentícia é um grande negócio e seus contratantes são políticos importantes. Em outros lugares, os governos negam cada vez mais o acesso à distribuição de alimentos em áreas controladas pela oposição, sendo a Síria, e o Sudão em seu regime anterior, dois desses casos.
A negação de ajuda alimentícia também pode beneficiar os comerciantes, pois aumenta os preços dos alimentos, beneficiando seus negócios, já que, à medida que as pessoas se deslocam, elas se tornam fontes potenciais de mão-de-obra barata. Os vulneráveis são frequentemente excluídos ou marginalizados, porque são os membros politicamente mais fracos da sociedade.
Destaque na inatividade política
Como parte de seu papel na melhoria das condições para a paz, o PMA pode analisar esses amplos efeitos políticos e econômicos e incluí-los na maneira como toma decisões. No entanto, o PMA não pode lidar com as causas políticas da fome, da insegurança alimentar e da desnutrição somente com a ajuda alimentar – ou na verdade com qualquer intervenção técnica.
Conflitos precisam de soluções políticas e os crimes de fome em massa precisam ser julgados. Mesmo umas das operações mais bem-sucedidas do PMA, a distribuição massiva de comida em Darfur em 2005, que reduziu efetivamente a desnutrição e a mortalidade, exigiu esforços diplomáticos para negociar o acesso necessário.
Existe o perigo de que o PMA se torne um substituto da ação política para tratar as causas do conflito ou para julgar crimes de fome em massa. Na verdade, isso perpetuaria o problema, pois as causas estruturais da fome e da desnutrição permanecem sem solução.
Por sua vez, mantém as pessoas vulneráveis em um estado de crise prolongada ou precariedade e desnutrição persistente. E uma dependência excessiva do PMA também pode absolver os políticos da culpa por causarem a fome ou, alternativamente, a responsabilidade da comunidade internacional de proteger.
Com os holofotes do Prêmio Nobel da Paz, o PMA pode fazer muito ao tornar visíveis as causas políticas da fome em conflitos, ajudando a identificar os crimes relacionados a ela, promovendo uma assistência eficaz específica em contextos particulares e utilizando seu poder para realizar ações políticas.
Traduzido do inglês por Marcela APS Pedroso / Revisado por Gabriela Assis Santos