CRÔNICA
A idéia era ficar só um mês, mas o apartamento de Melissa no Lower East Side era muito prático naqueles primeiros tempos, no final dos anos 90. Ela estava na França, segundo meu amigo David, fazendo doutorado em alguma área de antropologia. O “sublet”, o costume de alugar um apartamento por temporada enquanto se está fora, é muito comum em Nova York. Ficam os móveis, a decoração, tudo. Muitas vezes o acordo não é permitido pelo proprietário, por isso concordamos em dizer que éramos amigos ou parentes, para que nenhum vizinho desconfiasse do aluguel a estranhos. David vinha de Los Angeles e eu do Rio.
Eu não conhecia David e nem Melissa. Era tudo um arranjo virtual, numa época anterior as redes sociais, sem foto, sem vídeo, sem muita referência. O valor da hospedagem e a presença de alguém da minha idade e perfil, que também estava reiniciando sua vida na cidade, acabou me convencendo. Dei a David um envelope com o valor adiantado para dois meses assim que o vi no aeroporto. Apertamos as mãos, pegamos um táxi e chegamos juntos ao apartamento na Stanton Street. Na época o bairro ainda era confuso, gangs circulavam e havia sujeira por todo lado. “Já foi muito pior”, garantiu-me Melissa, no anúncio no Craigslist, na época o grande e único classificados online.
Todo o arranjo foi feito em um grupo do yahoo sobre a cidade. Uma americana em Paris, um nova iorquino voltando de Los Angeles depois de uma década fora e um cara muito doido – eu –, que aceitei embarcar nessa aventura. Fazendo as contas, eu só tinha 2 mil dólares “para o resto da vida”, como costumava dizer sorrindo e ironizando da minha loucura. David me lembrou “isso não dá para um mês”.
Como dizia minha avó, Deus protege os loucos. Partimos para o tal apartamento sem a menor ideia de como seria o lugar, sem saber quem era Melissa. Tudo que tínhamos era uma indicação de onde estava a chave e algumas recomendações sobre o lugar : nunca falar aos vizinhos que não éramos parentes, jamais mudar qualquer quadro ou móvel de posição, não atender o telefone fixo, nunca.
Achei um pouco estranho, mas o valor do aluguel era modesto, estava a poucas estações do coração de Manhattan e com toda a energia e insanidade dos vinte e poucos anos. Tudo me pareceu normal, recomendações rotineiras de aluguel de temporada, mas o telefone fixo era muito irritante. Tocava sem parar. Depois de dois dias resolvi atender e sempre um silêncio depois do meu “alô”.
A decoração não me causava nenhum estranhamento. Se era antropóloga, então deveria ser comum aquelas gravuras de africanos nus, corpos gregos entrelaçados, e se não me engano, alguns órgãos sexuais masculinos e femininos em pinturas orientais. Com certeza Melissa havia se especializado em algum estudo sobre comportamento erótico ou mesmo estudos de gênero. Até o quarto dia, era essa a minha sensação. Uma antropóloga, regras misteriosas, chamadas silenciosas e sorrisos tímidos de David, quando eu comentava qualquer coisa. Como não nos conhecíamos, preferi não tentar interpretar suas reações. Naqueles primeiros dias minha cabeça estava em conseguir emprego, organizar minha vida e conhecer a cidade.
Tudo parecia caminhar bem até que eu decidi parar na porta do edifício para observar as pessoas – uma das minhas distrações favoritas. Eu olho e imagino quem é aquela pessoa, onde vive, por que se veste assim. Quando estou em um lugar novo sempre tento me integrar fazendo esses mergulhos com o olhar. Vejo como se vestem, como seguram o cigarro, como caminham discretos com a bebida alcoólica escondida em um saco de papel. A ideia da antropologia de Melissa parece que havia me contaminado mas no fundo era puro fascínio pela cidade. Minha alma carioca e suburbana não era compatível com o silêncio e logo fiz amizades com as vizinhas dominicanas do primeiro andar: Tânia e Andrea, gordinhas simpáticas, espontâneas e pareciam não fazer nada além de ficarem sentadas na porta do prédio a tarde toda, interagindo com os vizinhos. Elas me alertaram logo: “Não dê muito papo para porto riquenhos” – e percebi a rivalidade no primeiro final de semana em que vi pela janela cadeiras voando e brigas de faca no final de uma festa de rua.
Andrea, a gordinha divertida do 1A, foi quem me provocou logo de manhã, quando saía para buscar emprego: “Cadê a americana sua amiga?”
Timidamente respondi que estaria “viajando”, arrancando dela uma imensa gargalhada “Tá descansando, né tadinha”
Confesso que caminhei uns quatro quarteirões com aquela gargalhada na cabeça “descansando de quê?” Sabe quando você esquece de concluir o pensamento e sai da conversa com dúvidas? Na volta, três horas depois, resolvi matar minha curiosidade. Dessa vez era sua irmã que avançou na conversa “é um tal de entra e sai de homem nesse apartamento que Deus me livre”, completou.
Subi as escadas com a certeza que Melissa fazia programas naquele apartamento e logicamente seria conhecida por isso. A prostituição é proibida por lei nos Estados Unidos e talvez por isso David não teria comentado comigo. Como sou uma pessoa extremamente liberal, inclusive a favor da legalização desse tipo de “serviço”, apenas sorri e me diverti com o fato.
Andrea foi mais a fundo nos dias seguintes. Fez o sinal da cruz ao se referir a Melissa, falou dos gritos que ecoavam pelos corredores, relatou que sentia cheiro de vela queimada e que a vizinha americana colocava óperas altas no meio da noite. “Bruxaria” assegurou. Só a magia explicava a clientela: homens bonitos e altos, executivos, um rabino que vinha toda semana, um casal que chegava em limusine com champagne na mão. As vizinhas descreveram o perfil dos “clientes” como inexplicável para uma baixinha, sardenta e magrinha, sem “culo” e sem “peitões”. Lá na minha terra – explica – ela morreria de fome porque é muito fraquinha, completou a dominicana, claramente invejosa da sofisticada clientela.
Eu tive que concordar com a análise. Pelas fotos que vi, Melissa parecia uma freirinha, uma criatura angelical e frágil, longe do estereótipo da prostituta que eu conhecia, com corpão e sedutora. Vindo do Brasil, onde as fotos de mulheres lindas de corpos esculturais se exibiam nos anúncios de jornais, a imagem e a profissão de Melissa – uma professora de antropologia –, não combinavam com esse ofício. Com o tempo e maturidade fui entendendo que tudo em relação à sexualidade na sociedade americana parecia distante do meu conhecimento erótico. Não era apenas a comida, os cheiros, as cores e a forma de vestir que eram diferentes. O conceito de sexy também aqui teria uma outra maneira de se expressar – e por ser ilegal, o comércio dos corpos teria outros apelos e atrativos.
Estereótipos não são mentiras – já dizia a escritora nigeriana Chinamanda Adiche –, são apenas verdades incompletas. E a imagem que tinha das trabalhadoras sexuais estava em parte, alimentada por anos e anos da minha cultura latino americana de corpos exuberantes.
Ela não é prostituta – garantiu David, causando uma enorme confusão mental. Como não é ? Ela recebe muitos homens, casais, há gritos e gemidos, as vizinhas tem certeza de que este apartamento é um prostíbulo. Deixei claro que eu não tinha nada contra – só que era engraçado e explicava as ligações de telefone que não completavam e os comentários das vizinhas.
David continuava negando, rondando a sala em busca de palavras mais adequadas.
Ela é uma dominatrix, não faz sexo com ninguém. Apenas bate, espanca seus clientes. Disse David em posição defensiva.
E pagou a faculdade toda com isso – completou.
Nesse momento, Melissa se tornou uma heroína – pagou a faculdade toda, foi para a Europa estudar, era uma antropóloga e vivia em Nova York. Um perfil que eu admirava muito – e ainda por cima batia nos outros e ainda ganhava dinheiro? Ah não, era demais pra mim. Melissa era o sonho americano.
Rimos muito dos comentários das vizinhas, inclusive dos gritos e gemidos – quem seria o cliente mais escandaloso? Achamos nos dias seguintes alguns “equipamentos” da menina no armário do corredor: correntes, máscaras e uma variedade de cintos e chicotes. Foi o melhor mergulho cultural na sociedade americana que fiz e na época uma novidade. Não sei porque, mas o sadomasoquismo era até, nos anos 90, uma novidade enquanto prática na América Latina, mas nos Estados Unidos e Europa já existiam casas especializadas e até profissionais como Melissa, que atendiam em casa, em sessões de gritos e dor. Primeira lição de imigrante: o desejo, fora dos trópicos, pode ser diferente.
Saímos do apartamento na data combinada e nunca me encontrei pessoalmente com Melissa. Sempre deixei essa história da Stanton Street – meu primeiro lar em Nova York – como uma passagem engraçada para contar a amigos. Miss Hope – como era seu sobrenome – ilustrou dezenas de conversas em que eu retratava as diferenças e diversidade de sexualidades entre americanos e latinos em geral. Mais de três décadas depois, o filme “Cinquenta tons de cinza” levaria ao grande público o que eu havia presenciado naqueles anos. Um apartamento adaptado, mas sem milionários taradões e jovens inocentes seduzidas. Na prática, os tons da Stanton Street eram bem mais abertos, divertidos, coloridos e menos sofisticados do que na obra de E. L. James. Ainda bem.