OLHARES

 

 

O povo foge da ignorância
Apesar de viver tão perto dela
E sonham com melhores tempos idos
Contemplam esta vida numa cela

Esperam nova possibilidade
De verem esse mundo se acabar
A arca de Noé, o dirigível
Não voam, nem se pode flutuar

Êh, ô, ô, vida de gado
Povo marcado
Êh, povo feliz!

(Admirável Gado Novo — Zé Ramalho — 1979)

Vacina é o que o gado espera para poder prosseguir ou completar o seu ciclo de vida.

Não é à toa que a palavra vacina deriva do latim vaccina, de “vaca”. No final do século XVIII, o inglês Edward Jenner desenvolveu a primeira vacina, para combater a varíola, ao perceber que eram elas, as vacas, que desenvolviam a doença de forma mais branda. Ao utilizar a secreção de uma das feridas da vaca contaminada em um jovem, houve uma aceleração de sua recuperação e se descobriu a imunidade, assim como as mulheres que ordenhavam as vacas também apresentavam maior imunidade diante das demais. Ao menos dessa vez, a vaca salvou a humanidade antes da indústria farmacêutica se estabelecer.

Historiadores já identificaram que, para além das guerras, as pestes, principalmente por novos vírus que criaram epidemias e pandemias ao longo dos tempos, são uma forma de contar a história do mundo. Ou seria histórias dos mundos? Afinal, conhecemos a história a partir do mundo dos que sobrevivem ou “vencem” as guerras e as pestes. Mas a desigualdade, que independe das guerras e das pestes, torna um outro mundo alheio às vitórias e, consequentemente, a autoria da história. Nelas se experienciam as balas, os vírus e de seus corpos saem as soluções para estes conflitos humanitários, que mudam a lógica e política das sociedades. O anticorpo virou um caminho seguro ou, numa metáfora conhecida, o veneno virou a cura, mesmo que ninguém queira ser picado pela cobra, símbolo da medicina.

Outrora, foram as secreções, o pus do gado, que criaram a lógica da cura. Mas, para isso, muita gente morreu. Depois, se percebe que essa cura pode se gerar lucro, diante do medo de perder a vida ou de vencer a doença.

Vencer vem do latim vincĕre, ou seja, vencer, derrotar. Convencer, também do latim convincĕre, significa vencer completamente, provar culpabilidade, expor a vitória sobre o outro em qualquer circunstância. Uma vitória que assume o caráter de poder na afirmação de um argumento ou em uma ação. O convencimento se tornou o antagonista da “cura da vaca”, pois quem detém o poder, se julga um pastor que determina que o rebanho tem que ser imunizado pelo contato direto com a doença. Hoje, as vacas, aos olhos dele, não são como as de outrora, que criavam os anticorpos e propiciavam a cura. Sua fragilidade permite que os “convencidos passivos” possam ser personagens de uma história que não terá vitória estatisticamente, mas validarão o que o “autor” dessa história ostentará como tal.

Pouco menos de um século após a primeira vacina, um norte-americano, James Marion Sims, que entrou para história como pai da ginecologia moderna, enquanto inventor do procedimento de reparação da fístula vesico-vaginal, sem anestesia, assassinou uma dezena de mulheres escravizadas no país, que participaram dos testes como “voluntárias”. Elas eram pessoas escravizadas, não voluntárias, não donas da história que seria contada depois. Uma delas passou 30 vezes pelo procedimento em etapas diferentes da vida. Em sua defesa, J. Marion Sims contou, em sua autobiografia, que lhe causou incômodo os insucessos da prática, mas que suas “voluntárias” pediram que ele prosseguisse nos exames para resolver o problema que afetava o parto das mulheres como um todo. Ele omitiu o dado de que pessoas escravizadas não tinham querer e de que as cobaias humanas utilizadas nesse procedimento ampliaram dois mitos presentes até hoje: que pessoas pretas tem maior tolerância a dor e, por isso, precisam de pouca ou nenhuma anestesia; e de que o número de mortes dentre populações oprimidas não importa quando os vitoriosos, ou “convencidos”, saem beneficiados.

O sentido da sobrevivência, diante de momentos onde não há uma Arca de Noé para te salvar e nem a vacina, que vem dos olhos humanos, percebendo os corpos dos vencidos pela doença, traz uma pergunta: por que há luta?

Epidemias, como a atual, atingem a todos, mas a observação científica só atinge aos convencidos e aos donos do rebanho. Impressionante que o gado aparenta temer a epidemia, mas a grande expectativa é a de uma vacina. Vacina para convencer que não precisaremos curar o mundo dos maus hábitos que impactaram o ecossistema e nos tornar todos competidores por quem tem o acesso ao paliativo. A cura não está na vacina, sempre esteve no gado. Cabe ao gado se entender como dono de si e se preservar sem convencimento do pastor. Não ficar mais encurralado, isolado, esperando o destino planejado por quem determina a sua história.

Entender que a cura começa pela autonomia na decisão sobre si e de si para com o próximo.


Esse texto contou com a revisão crítica de Tayna Arruda.