CRÔNICA

 

 

A roupa rodava dentro do lava-roupas. Eu olhava vidrado aquele movimento. A espuma escorria as vezes pelo vidro. Eu estava feliz em estar lá, agasalhado e finalmente sem neve na bota.  Algum gelo ainda deslizava do casaco, pingando no chão.

E o tempo passava, naquele inverno intenso de 2002.  Não há imigrante que não tenha feito o exercício de carregar bolsas pesadas e malas de roupa até uma lavanderia. O esforço, na chuva ou neve, é também a possibilidade de uma boa conversa, um espaço de sociabilidade. É lá que vemos os anúncios de emprego, as vagas e quartos para alugar, tudo nos murais e portas. Lá também podemos ler revistas e tomar coca cola, falar da vida com conterrâneos.  Antes da internet e smartphones, era nos jornais locais que encontrávamos trabalho, um carro e as notícias do Brasil.  “Nossa, aquele ator morreu”, “soube que o Prefeito da minha cidade foi preso?” “Aquela menina, que trabalhava naquela novela, qual é mesmo o nome?”

No culto da igreja domingo todos estavam bem vestidos e as aparências enganam. Na lavanderia, todos estão de camisa rasgada, caras cheias de espinha, não há maquiagem e nem preocupação. Lá é o lugar de donas de casa, trabalhadores da construção, babás, porteiros. Não há vaidade possível a 18 graus negativos, numa tarde de sábado, cercado de crianças gritando e com a camisa cheia de manchas de ovo cozido.  Foi assim que vi Sebastiana, pela primeira vez. Ela carregava duas sacolas enormes e me pediu espaço para sentar-se ao meu lado.  E eu só queria mesmo é ficar absorto pelo movimento das águas da máquina. Hipnotizado pelo sabão e meias que pulavam lá dentro. A espuma quente lá dentro enquanto lá fora caíam do céu pedaços pequeninos de gelo.

Ela puxou assunto “Que frio, né?”, respondi com um sorriso. Dei mais espaço para que se acomodasse no banco. “É mineiro também? Aqui todo mundo é mineiro ou goiano” disse, com bom humor.

– Sou carioca – respondi.

“Sebastiana. Prazer.  Eu sou de Fortaleza. Acho que nordestino e carioca não tem por aqui, não é ?”

Parei de observar a roupa e escutei a sua história: na verdade Sebastiana era de Sobral e tinha chegado aos Estados Unidos nos anos 90. “A saudade tá arretada, carioca, cheguei aqui novinha, um pitéu, olha hoje, toda “letreca”… tive dificuldade de entender algumas palavras, mas segui curioso. Depois de reclamar do frio, da exploração das “patroas” da faxina e do custo de vida, ela começou a falar dos planos para o futuro.

– Você acha que se eu voltar pro Ceará para visitar minha mãe que tá doente eles me deixam vir pra cá de novo, carioca?

Fiz um movimento negativo com a cabeça. – Conta mais, vai. Como você veio parar aqui ?

O resumo é que Sebastiana foi traída pelo marido, resolveu deixar Sobral e carregou suas duas filhas.  Aceitou uma oferta pela casa que seu pai havia lhe deixado – um terreno de perder de vista – e rumou para Fortaleza.

Paramos para tirar a roupa da lavadora e colocar no secador. Mais dois ciclos.

Ela seguiu na história: “Entrei em uma agência de turismo e pedi uma passagem para os Estados Unidos – nem sabia que precisava do tal do visto”. A explicação do agente de viagens a deixou triste até que lembrou que sua irmã mais velha, recentemente falecida, tinha ido a Disney.  Sebastiana pegou o passaporte e como eram muito parecidas, assumiu a identidade dela. Como mãe, deu autorização por escrito para que a irmã levasse seus filhos a Disney.  E foi assim que conseguiu entrar e passar pela imigração, em uma época anterior aos reconhecimentos faciais e digitais. A maquiagem a deixou muito parecida com Ivonete, sua irmã “Que Deus a tenha”.

Fiquei fascinado com a história, quase um roteiro cinematográfico de fuga de algum país do Oriente Médio. Imaginei o pavor e o medo – mas Sebastiana sorria e na pura inocência parecia não ter ideia do risco que passou. Mas a pureza não tinha acabado. – ” Eu quero muito voltar pra ver minha mãe. “Eita saudade da gota serena.”

Estávamos no pós-atentado, e as primeiras medidas de segurança estavam sendo implantadas – ainda assim Sebastiana achava que poderia ir ao Ceará e voltar, como se o truque de dez anos atrás pudesse seguir funcionando.

Para meu prazer e fascínio, o relato seguia: Sebastiana chegou a Miami com dois filhos e não sabia onde estava.  Achava que Nova York ficava perto, numa distância de Sobral a Fortaleza. Lá no aeroporto foi salva por um taxista cubano que amava Roberto Carlos “Me leva pra onde tem brasileiro, moço” disse, ao entrar no carro.

Em Pompano Beach, ficou em um hotel de beira de estrada e no dia seguinte foi a um restaurante brasileiro próximo e de lá só saiu com trabalho.  E seguiu sua vida de imigrante, colocou as filhas numa creche e escola, pagou suas contas com trabalho duro e exploração.  Dez anos depois, já sabia onde ficava Nova Iorque e uma patroa a levou para morar lá. “Gente boa carioca, ela é como uma mãe pra mim.”

Fui lavar roupa e me deparei com a deliciosa aventura de Sebastiana.  Ela passou a ser o centro da minha atenção.  Que fantástico, eu me lamentando das oportunidades dos meus primeiros tempos por aqui e me deparo com o ser humano mais corajoso que conheci na vida. “E será que dá, carioca”?  Ela insistia.

“Não dá, Sebastiana. Depois do 11 de setembro, você seria presa com um passaporte falso e até explicar essa história… Sabe aquela roupa lá dentro rodando? Seria você”, expliquei, sorrindo, ainda fascinado com sua inocência.

E lá foi Sebastiana, com sua saudade da gota serena, represada por anos, que possivelmente saberá da morte de sua mãe e de todos sem que tenha oportunidade de abraçá-los pela última vez. A única certeza do imigrante sem documentos é que isso pode acontecer a qualquer momento.  Passei da euforia desse encontro a tristeza, por saber que tantas outras Sebastianas estariam ao meu redor.  Eu, privilegiado por ter um passaporte e visto, senti a dor daquela prisão.

Sebastiana conseguiu criar suas filhas e mudou o destino delas, se livrou de um marido abusivo, fez seu caminho. Anos depois desse encontro, suas filhas foram beneficiadas por um ato do governo Obama, o Deferred Action for Childhood Arrivals (DACA), que permitiu dar um status provisório e legal a filhos de imigrantes indocumentados que chegaram ao país “sem direito de escolha”.  Ela não pode ir, mas uma de suas filhas voltou a Sobral e colocou flores no túmulo da avó.

A “invocada” e “estritada” Sebastiana – usando expressões cearenses para corajosa e enfurecida –  pode ter falsificado sua entrada, mas fará sua saída deste mundo, com um passaporte muito mais desejado, o de ser humano cheio de sonhos e bravura.

E a roupa ? Pronta para mais um dia de trabalho e suor, numa terra que nos espreme e torce, fazendo as lágrimas escorrerem, como acontece no vidro da máquina de lavar.