MÚSICA

 

 

História da Música Italiana em dez capítulos, entre delírios e falsidades. Cap. 2

Não só de jazz-rock ítalo-napolitano vive o homem no chuveiro. De free jazz também. E lá vou eu na loja de discos. Os olhos esbugalhados do atendente não conseguem entender como um garoto que nem 15 anos tem, possa conhecer Cecil Taylor ou Ornette Coleman. Feliz da vida, vitrola no volume máximo e a família em peso querendo me defenestrar, pai, mãe, irmãos e avó. Nunca mais a emancipação compositiva, os sons em liberdade dos profetas do novo jazz, ecoariam na sala de casa. O chuveiro, refúgio dos réprobos, último baluarte de soberania pessoal. Independência ou morte! Mas, admito, reproduzir cantando, mesmo no chuveiro, qualquer melodia de Ornette Coleman ou Cecil Taylor, era demais também para mim. Até que ouvi no rádio um grupo chamado Área. Nada mais foi como antes. Uma música violenta, suja, na qual as harmonias sofisticadas eram atravessadas por melodias que pareciam gritos de elefante bêbado. O cantor de nome grego, dizia que a revolução estava próxima, que podíamos dançar e lutar. Nada mais foi como antes. O torpor da música italiana havia sido chacoalhado para sempre. A canção, na sua forma clássica, a letra onde cuore (coração) rima com amore (amor) estava definitivamente morta. A música do Área era a vanguarda da Revolução Musical que unia o free jazz dos mestres americanos a melodias que eu podia compreender e, principalmente, à língua que eu podia reproduzir debaixo do chuveiro.

A voz que acabamos de ouvir é de Demétrio Stratos, cantor, compositor e alma do grupo, no seu disco solo mais importante. Pesquisador das potencialidades da voz humana, estudava os cânticos populares do mundo inteiro e suas técnicas de vocalização. Diz a lenda que atravessara o deserto da Mongólia em busca dos famosos nômades cantores, capazes de emitir, através de um único sopro, duas ou mais notas musicais, coisa de louco. E além do mais, podiam cantar também durante a inspiração do ar. E Demétrio Stratos foi lá, e voltou doidão. Mas era quando cantava com o Área que a coisa pegava fogo. Era como se o grupo de Miles Davis se unisse ao Weather Report, mas com um frontman no vocal.

Ninguém podia prever o que ia acontecer durante as apresentações do grupo, quando as forças da natureza soltavam suas amarras para se livrar na catarse coletiva de um ritual pagão. Tudo era possível, até mesmo usar os velhos símbolos da luta de classes para desconstruí-los e reapresentá-los, impregnados das novas instâncias de um mundo em ebulição, pronto a explodir.

Era a época em que Marx abraçava o Living Theater, em que Nietsche tocava Jimi Hendrix, e passeando por aí era fácil encontrar o Foucault de porre no boteco da esquina. Mas a Glória é a Glória. A menina mais linda da escola. Ligou e convidou. Pronto, Paolo, preciso falar com você, está livre, sábado, que tal uma pizza? A Glória é a Glória. Tudo bem que nunca havia trocado mais de três palavras com ela. Patricinha que só, toda shopping e grife, imagina se gostava do Área, do Demétrio Stratos. Ela era mais Claudio Baglioni, cuore-amore, ela era canção italiana, canção igual a si mesma há séculos, herdeira da melodia de óperas velhas e mofadas. Nada a ver com revolução, nômades cantores da Mongólia, Michael Foucault. Mas a Glória é a Glória. Olhos de Salomé ao último véu, mãos de mulher-gato, cabelo cor da noite, e paro por aqui. Na pizzaria falarei com ela de Claudio Baglioni e de suas melodias água com açúcar, dos seus textos de groselha, daquela voz de taquara rachada, do mundinho da moda, fofocas… . Mas, em contrapartida, iria me perder para sempre nos seus olhos, até que o Área se tornasse uma incômoda lembrança, até afogar no algodão doce das melodias de Claudio Baglioni, o maior cantor que a música italiana já viu.

Ele é o maior e o melhor porque resume o bem e o mal de todo o estereótipo musical itálico. Ele é o melhor porque sim, porque a Gloria gosta. E eu também. Tá bom, demorei quarenta anos para admitir isso. Naquela época teria perdido amigos, status e dignidade. Hoje, que me tornei um senhorzinho de óculos e barriguinha, posso afirmar que Claudio Baglioni escreveu páginas musicais memoráveis, nas quais retoma a grande melodia italiana e a repropõe tal e qual ela sempre foi, sempre é e sempre será. Porque a melodia, a sucessão horizontal de notas é o que é: uma sucessão de notas para poder cantar no chuveiro e muita gente incomodar. Os italianos construíram e inventaram a melodia do mundo ocidental, descobriram a beleza dos intervalos naturais entre as notas, resolvendo todas as dissonâncias, para a Glória poder cantar feliz ao voltar da escola. Só eu e poucos outros, fazíamos de conta de não gostar dele. Não podíamos admitir. Desculpa, Claudio, desculpa: sua letra de esperança no futuro, de aposta certeira na vida, de total atenção aos eventos da realidade do seu tempo, ultrapassa as décadas e chega à atualidade com o frescor daqueles dias: um pai que explica o mundo ao filho e que, além das agruras da vida, prevê que o pequeno avrà uma radio per sentire che la guerra è finita, terá um rádio para ouvir que a guerra acabou!

Demétrio Stratos morreu destroçado por uma leucemia. Um dia depois, em Milão, um grande concerto reuniu os maiores músicos, as bandas e os cantores da época. Raiva, frustração, sons ácidos, slogans, punhos fechados, terminava uma época que sabíamos não podia durar. Se perguntar a um garoto do século XXI quem foi o Área, pode esquecer. Agora, pergunte quem é Claudio Baglioni…

O campeão da música sarcástica, cheia de conteúdos políticos, Enzo Jannacci, como eu, também pediu perdão, disse que versos como esses, dedicados aos nossos velhos, eram dignos de um grande poeta. A solidão da idade, o corpo em frangalhos, a memória falhando e questi figli che non chiamano mai, esses filhos que nunca ligam, são as palavras mais humanas, são a compaixão, a solidariedade e o amor, são gelo em brasa viva: dedos na feridas, socos na alma suja dos adultos atarefados que se esqueceram das coisas mais importantes.

Sábado, toca o telefone: “Paolo, desculpa, mas aconteceu um problema, não posso mais sair, vamos deixar para uma outra vez”, “Não se preocupe, Glória, tudo bem”, “Obrigada, a gente se vê, te ligo”.

E nunca mais ligou. Eu, meio tristonho, sai mesmo assim, dar uma volta, espairecer, afogar as mágoas da solidão, curar a dor de cotovelo. Estava frio, sozinho na rua… uma música na cabeça, só ele sabia o tamanho do meu sofrimento, só ele era capaz de cantar minha dor…  e io, solo, resto qui, camminerò solo, da solo continuerò, e eu, sozinho, fico aqui, sozinho andarei, sozinho continuarei.

Claudio Baglioni, il grande.


Acesse nesse link outros capítulos já publicados