MÚSICA
História da Música Italiana em dez capítulos, entre delírios e falsidades. Cap.1
Batia na porta com força. “Basta, para, cala a boca”. Era compreensível. Minha mãe, três filhos, um trabalho e uma casa para manter, sofria de crônicas dores de cabeça, não podia aguentar meus gritos. Batia na porta com força.
“Para pai estou estudando”. Muitos anos depois era minha filha que repetia o gesto e o pedido da sua avó. Meus gritos impediam a concentração, o estudo, embaralhavam a matemática.
Veio a pandemia, a quarentena. E os golpes na porta, de novo. Desta vez é minha mulher, grupo de risco, obrigada a trabalhar em casa. E eu gritando no banheiro. O jato do chuveiro, o box, amplificam a voz.
Retorcido em mi mesmo volto a ser aquele garoto de 13 anos que entrou na loja de discos e gastou a mesada inteira, para depois ir correndo pra casa, botar o disco na vitrola, aprender o grito que atravessou as décadas e os continentes, provocando a ira da mulher que me pôs no mundo, da sua neta e da mãe dela. E eu lá, no blues, no jazz, na música, no grito. Lembro que foi um momento de catarse, uma lavação da alma.
Depois da ofensa, do escárnio que Elvis Presley tinha feito à minha dignidade, aquele grito esculhambando o mundo, colocou tudo na ordem certa: recolocou o Blues na música italiana, bem no lugar onde nasceu. Sim, o Blues, o lamento ancestral, o anseio de liberdade, nasceu na música italiana pelas mãos alemãs de Georg Friederich Händel: Lascia ch’io pianga la mia cruda sorte e che sospiri la libertà, (Deixa que eu chore minha crua sorte e que suspire a liberdade…)
É a história de sempre. No fundo da prisão, acorrentada, sonhando o sol, o ar, o vento, a liberdade, o amor… E o Blues continuou sua viagem, saiu da Alemanha e chegou à Itália, e nas mãos do compositor Giuseppe Verdi fez cantar o povo judeu, no cativeiro da Babilônia, a saudade de terra de Israel bella e perduta.
E eu lá, chuveiro e gritos, blues e jazz, tentando esquecer o insulto de Elvis. Na decadência das luzes de Las Vegas havia transformado a música símbolo de Nápoles, O Sole Mio, em uma rumba vergonhosa digna dos piores bordéis de Havana antes da revolução.
Nápoles, cidade-mundo, séculos de história, pátria de gregos, romanos, árabes, espanhóis, conquistada por civilizações mil, moldada nas lutas, no sangue, mas também no sol do mediterrâneo, no mar de Ulisses e Colombo. Nápoles, terra da melodia, do canto, do sentimento à flor da pele, da Sofia Loren e do Vesúvio, o vulcão-guardião da Terra. Nápoles, berço da música e da cultura italiana, não merecia a ofensa de Elvis. Foi de lá que as mais lindas melodias que o mundo já ouviu entraram para eternidade, foi de lá que o canto de milhões de migrantes do sul da Itália se espalhou pelas terras americanas e formou a sensibilidade musical dos artistas de meio mundo. O Sole Mio, Torna a Surriento.
Nápoles, terra dos sonhos possíveis, esmagados sob o peso e a violência da pobreza e da marginalização. É pelo labirinto dos seus becos miseráveis que os gênios do Neorrealismo italiano inventam o novo cinema logo depois da Segunda Guerra Mundial. Câmera na mão, andam por aí, entre os escombros dos bombardeios, as crianças famintas, os soldados das tropas aliadas que, distribuindo chocolate e chiclete, ganham átimos de prazer doados por moças macilentas. Nápoles não é a rumba de Elvis, Nápoles é a voz de um bebê de dois mil anos, é o choro de um velho recém-nascido ao se dar conta que sua vida será ludibriada pela maldita camorra, o braço armado do poder.
O Blues esperava a chegada dos soldados afro-americanos há muito tempo, desde a erupção que destruiu Pompeia, a poucos quilômetros dali. E quando os soldados chegaram, perceberam que o povo já havia colocado os nazistas pra correr, insurgindo contra o dragão da maldade. A esperança da reconstrução foi traída pela força do poder, que mesmo mudando de pele, nunca perde sua capacidade de matar. Por isso o meu grito no chuveiro, porque tantos anos atrás comprei um disco de um grupo nascido em Nápoles, filho do Blues e do Jazz, filho da luta pela liberdade: Napoli Centrale.
James Senese, compositor, saxofonista e cantor, grita sem medo, canta a história de opressão e desespero: “como são lindos os campos (Campagna), mais lindos ainda para o patrão que enche os bolsos de ouro e para a patroa cada vez mais gorda, quando a gente trabalha no sol e na chuva…”. A letra terrível, escrita em meados dos anos setenta, parece sair dos cânticos medievais, parece emergir da música de Händel, filha do Blues. James Senese canta em dialeto napolitano.
Na Itália, os dialetos são verdadeiras línguas que o povo usa na fala corriqueira. O Italiano, língua oficial, também é dialeto. É o dialeto que falavam e no qual escreviam os poetas Dante Alighieri e Francesco Petrarca, que de tão lindo e musical tornou-se uma espécie de língua franca. Mas com o passar dos séculos, cada região conseguiu manter sua caraterística. E em Nápoles, James Senese inventa o jazz-rock ítalo-napolitano, inspirando-se nos mestres contemporâneos do estilo e na tradição de sua gente. Sua necessidade de escancarar a injustiça que assola o mundo do trabalho é tanta que o canto se transforma em grito para todo mundo ouvir, para minha mãe, minha filha e minha mulher saber Como são lindos os campos… Campagna! Com’è bella la Campagna!