E a concepção dessa filosofia teve início por volta de 2010 quando um primo meu, e também vizinho, resolveu que ia se tornar “Vida Loka”. Sim, ele queria engrossar as fileiras do mundo do crime. Adolescente “revoltadinho” e queria escandalizar a família. Já adianto que o mesmo não obteve êxito no novo empreendimento. Ainda bem!
O que eu aprendi com ele no processo? Sim, processo, porque se tornar algo tão diferente de todas as suas referências mais próximas, requer um estudo de caso, um laboratório para saber como ser. E uma das atividades desse processo era via música. Ele ouvia Racionais MC´s 24h por dia, durante os 7 dias da semana. Em alto e bom som.
O que me obrigava a ouvir as músicas também, já que moramos em casas geminadas. No início reclamei muito, mas nada adiantou. Tinha dias que estava insuportável, pois tinha uma música em especial que ele repetia várias vezes, ininterruptamente. E como eu não podia fazer nada, comecei a me questionar e tentar achar uma forma de não deixar que isso alterasse meu humor, e procurar o que havia de bom no processo. Assim, comecei a prestar atenção nas letras das músicas, ao ponto de ter decorado algumas delas, principalmente a que ele mais ouvia.
E me deparo com o relato de um presidiário que estava denunciando o massacre do Carandiru. A música era “Diário de um detento”. Foi a partir da análise das letras das músicas dos Racionais que pude verificar que ao contrário de que alguns pensavam e diziam, esse grupo musical não fazia apologia ao crime. Pelo contrário, suas músicas evidenciam que o crime não compensa. As letras estavam dando voz a um segmento social que é violentado diariamente pelo racismo, pelas desigualdades sociais, pela violência institucional.
Os Racionais Mc´s estavam falando de seu lugar social, estavam dando voz aos moradores pobres da periferia Paulista, a população carcerária brasileira, que figura entre as 3 maiores do mundo, e compartilhando a experiência dos que haviam se frustrado com o mundo do crime. Dizem “que malandragem de verdade é viver” em letras como Fórmula Mágica da Paz, onde o ponto central é justamente procurar a paz e não a guerra.
Eles estavam fazendo um raio-X da realidade social brasileira. Eles estavam tornando-se narradores de sua própria estória. Ou seja, fazendo uso do “lugar de fala”. E a partir dessas percepções, passei a ouvir e ser fã dos trabalhos deles, a ponte de ir ao show e usar as letras de suas músicas em minhas aulas. A música como recurso didático já é uma ferramenta amplamente utilizada em sala de aula, mas usar as músicas dos Racionais tem um diferencial.
É a ideia da desmarginalização, pois assim como eu já pensei um dia, muita gente acha que Racionais é música de bandido. É também uma oportunidade de se conectar com o público jovem, principalmente os meninos negros das classes populares, que são maioria em minhas salas de aula, que em algum momento da vida já pensaram em se tornar um “Vida Loka”, e ia buscar nas letras dos Racionais MC´s as referências, mostrando que só escutavam, mas não ouviam os Racionais.
Pois quem ouve o que eles têm a dizer, verificará que eles estão denunciando crimes e não fomentando. Verá que eles encontraram na arte, a forma de narrar as desigualdades sociais que as classes populares sofrem diariamente. Vão narrar o drama do modelo de desenvolvimento pelo consumismo. Vão jogar luz sobre as muitas “Donas Marias” que são chefas de suas famílias. Mostram o drama das mães que perdem suas crias para o tráfico de drogas.
Como pode ser verificado na letra de “Capítulo 4, Versículo 3”, do icônico álbum Sobrevivendo no Inferno. Eles denunciam, estatisticamente, a violência diária do preto, periférico e pobre no Brasil. Eles romperão com as instâncias hegemônicas de legitimação para manter seu radicalismo de classe, como bem observado por Acaum Silverio de Oliveira, professor de Literatura Brasileira da Universidade de Pernambuco, que escreveu a introdução do livro dos Racionais, lançado em 2018 pela Companha das Letras e que figura na lista de leituras obrigatórias para o vestibular da UNICAMP.
Acauam, segue dizendo que a periferia percebeu, antes de todos, as heranças do modelo de projeto genocida, inaugurado no período escravocrata e aperfeiçoado durante a ditadura militar, que coloca todo preto e pobre, como aponta a letra de “Qual mentira vou acreditar”, como “suspeito profissional”. Eles estão dando voz aos sobreviventes do projeto de exclusão social que esconde, encarcera e mata a população negra e pobre.
Desta forma, as letras dos Racionais, “reivindicam uma tradição cultural negra por meio de um discurso de demarcação de fronteiras étnicas e de classe que denuncia o aspecto da violência e dominação contida no modelo cordial de valorização da mestiçagem”. Afirma Acauam, na introdução de “Sobrevivendo no Inferno”, livro homônimo do CD mais vendido do quarteto. O álbum “Sobrevivendo no Inferno” vendeu 1,5 milhão de cópias em 1997.
Acredito que todo mundo aqui, já deve ter escutado o ditado popular de “quem tem boca, vai à Roma”. E foi exatamente o que os Racionais fizeram através de sua arte! Em 2015, o Papa Francisco, em sua passagem pelo Brasil, foi presenteado, pelo então prefeito de São Paulo, com um CD dos Racionais MC´s, como o papa é pop, acredito que tenha ouvido e gostado!
Desta forma, não deixemos o outro tirar a nossa paz. Por mais difícil que uma situação seja, sempre existirá uma lição boa das coisas ruins. É bem complexo fazer esse exercício de redimensionar uma situação, de focar nas soluções, mas temos que tentar. Sei que é difícil, mas “as grades nunca vão prender nossos pensamentos”. Um salve ao meu primo que me apresentou aos Racionais MC’s.