O ser humano é descartável no Brasil.
Como modess usado ou bombril.
Cadeia? Guarda o que o sistema não quis.
Esconde o que a novela não diz.
(Racionais MC’s)
Foram precisos apenas 20 minutos para a polícia militar paulista inscrever na história do Brasil um dos episódios mais violentos e repugnante: o Massacre do Carandiru. Cerca de trezentos e vinte policiais armados com metralhadoras, fuzis e pistolas – sem insígnias e crachás de identificação – invadiram o pavilhão 9 da Casa de Detenção de São Paulo e executaram sumariamente 111 pessoas. A perícia concluiu que 70% dos tiros foram dirigidos à cabeça e ao tórax. Os exames de balística indicaram a intenção premeditada de matar. Os laudos periciais concluíram que vários detentos estavam ajoelhados, ou mesmo deitados, quando foram mortos. As fotos do Carandiru de 02 de Outubro de 1992 remontam aos maiores crimes e mais cruéis contra a humanidade. As condições desumanas que os presos eram submetidos culminaram no Massacre. Na época, o presídio abrigava 7257 homens, sendo que sua capacidade era de 3300.
O presidente da Comissão Internacional de Inquérito sobre a Síria das Nações Unidas e ex-Secretário de Estado de Direitos Humanos Paulo Sérgio Pinheiro esteve no Carandiru após o Massacre, na época ele integrava a Comissão Teotônio Vilela de Direitos Humanos:
“A Comissão Teotônio Vilela foi a primeira a entrar no Carandiru depois do massacre de 111 presos. Os funcionários lavavam o chão mas o sangue ainda escorria das paredes das celas que visitamos. Depois a verdade inscrita nos corpos das vítimas confirmou o que vimos como resultado de execuções. Logo os poderes vendiam a versão de que o massacre foi resultado de uma rebelião que só existia nas mentes das autoridades na sina de esconder os fatos. A ação da Comissão e defensores de direitos humanos foi essencial para que essa fantasia se dissolvesse. O massacre para as famílias dos detentos assassinados assume ares de um crime continuado porque até hoje, sob a proteção da justiça, pois perdura depois 28 anos a total impunidade para os PMs que cometeram aqueles crimes e para as autoridades mandatárias dos massacres, assim como a ausência de reparações para as famílias das vítimas. No Brasil depois de 30 anos de democracia constitucional e muito mais no presente, as vítimas, desde que miseráveis, pobres e negros como os massacrados do Carandiru as vítimas são sempre culpadas.”
Paulo Sérgio aponta para a falta de responsabilização dos envolvidos no Massacre. É fácil identificar no caso do Carandiru indícios da política estatal de extermínio da juventude negra. O Pavilhão 9, onde ocorreu a matança, ficavam os réus primários. Dos 111 detentos assassinados, 86 tinham idade entre 18 e 30 anos. Um levantamento das vítimas mostrou que 80% ainda esperavam por uma sentença definitiva da Justiça, ou seja, eram presos provisórios, não haviam sido condenados.
Sandra Carvalho, fundadora e coordenadora da Justiça Global, também esteve no Carandiru após o Massacre e descreve como a pronta atuação da sociedade civil foi fundamental para que os crimes cometidos pelo estado não fossem encobertos:
“Na época do Massacre do Carandiru, eu era aluna do Prof. Paulo Sérgio Pinheiro, meu querido mestre, na faculdade de Ciências Sociais da USP e integrava a equipe da Comissão Teotônio Vilela (CTV), nos anos iniciais de minha militância em direitos humanos. A pronta atuação da Comissão Teotônio Vilela, e da Pastoral Carcerária, na figura de Francisco Reardon, inesquecível Padre Chico, foi fundamental para descortinar para o mundo que o que estava em curso na Casa de Detenção, conhecida como Carandiru, era um grande massacre de pessoas privadas de liberdade. Era véspera de eleição, e o foco da imprensa era o pleito eleitoral. A entrada da CTV e da Pastoral amplificou as vozes dos familiares em desespero e deu visibilidade à carnificina promovida pela Polícia Militar de São Paulo”.
Hoje, passados 28 anos do Massacre, o Brasil possui mais de 700 mil pessoas presas. Episódios como o ocorrido no Carandiru tornaram-se constantes. A sistemática de mortes violentas em unidades de privação no Brasil já produziu entre 2 de outubro de 1992 e 02 de outubro de 2020 muitos “Carandirus”.
O mote da política de justiça criminal brasileira tem sido a construção de mais presídios, a privatização das unidades, a formação de novos efetivos policiais e o endurecimento penal, associado aos interesses do grande capital e tendo o racismo como estruturador da política. O resultado é o índice de aprisionamento no país, que já alcança o posto de 3º lugar entre as maiores populações prisionais do mundo. É urgente que todos os setores comprometidos com a superação do racismo e da criminalização de pobreza se mobilizem em torno de uma agenda positiva de promoção dos direitos humanos e do desencarceramento.
Das mais de 700 mil pessoas presas no Brasil, majoritariamente negras, cerca de 40% não foram sequer condenadas em primeira instância. O direito constitucional à presunção de inocência, para a população negra, é sistematicamente violado pelas próprias instituições que deveriam garanti-lo. A exposição a condições insalubres e indignas no cárcere, a prática sistemática de tortura, a negação de direitos fundamentais, como água, alimentação adequada, educação e saúde, põe em xeque a democracia brasileira, devendo ser combatidos por todos os setores comprometidos coma superação de racismo e das desigualdades sociais.
Aqueles/as que creem no encarceramento em massa como fórmula para a redução da violência no país estão enganados. O Brasil dobrou a população prisional em apenas 11 anos (de 361,4 mil presos em 2005 para 726,7 mil em 2016 – Infopen), no mesmo período os índices de homicídios aumentaram.
Diante de tudo isso, a Justiça Global defende que iniciativas como a Agenda Nacional pelo Desencarceramento precisam ser ampliadas e difundidas no conjunto da sociedade brasileira, de modo a reverter as taxas de encarceramento e diminuir, de forma efetiva e ampla, o número de pessoas presas no país e, consequentemente, as violências e violações decorrentes do cárcere.