Uma conversa com a pesquisadora e educadora Anunciata Sawada, da Fundação Oswaldo Cruz
Com formação em Museologia, especialização em Artes, mestrado e doutorado em Ensino de Biociências, Anunciata Sawada vive de aprender e ensinar sobre as ricas relações entre os campos da Ciência e da Arte, no Instituto Oswaldo Cruz – IOC/Fiocruz, no Rio de Janeiro.
Conversamos com ela a fim de conhecer mais sobre o tema. Saber o que é Ciência e Arte? Que reflexões este campo do conhecimento promove atualmente? E como esse diálogo entre Ciência e Arte pode auxiliar na formação de docentes? Essas são algumas das questões que a Professora Anunciata nos ajuda a compreender.
– Professora, como você define Ciência e Arte?
– É a pergunta que não quer calar..(risos). Como pensar Ciência e Arte, sem criar a expectativa de “mais do mesmo” ou da obviedade?
Uma das primeiras manifestações que remetem à relação entre Arte e Ciência pode ser vista no início da constituição do pensamento grego em Pitágoras. Os denominados pitagóricos captaram pela primeira vez as matemáticas e, além de desenvolvê-las, educados por elas, acreditaram que seus princípios eram os princípios de todas as coisas.
Como “pensar” Ciência e Arte livremente, sem condicionamentos de respostas e definições pré-determinadas? Temos sempre que ter um referencial específico? Quando falamos sobre a articulação entre ciência e arte, não trazemos em si, nenhuma novidade. A grande questão que meus parceiros de pesquisa (e eles são muitos) e eu colocamos é como colocar ciência e arte juntas respeitando suas especificidades. Como pensar saberes tão diversos entre si e tão próximos e fazer com que tenhamos um sentido? Ciência e Arte é um campo múltiplo e plural, e ele não cabe em caixinhas com a divisão do conhecimento, impedindo que os campos dialoguem sempre de forma inovadora. Jacob Bronowski (1908-1974) escreveu : “Há um fio que percorre continuamente todas as culturas humanas que conhecemos e que é feito de dois cordões. Esse fio é o da Ciência e da Arte. (…)”. Depois ele completa com o fato de que não existem culturas sem ciência e não existem culturas sem arte. Onde está uma, está a outra.
O artista é influenciado pelo seu meio, pelo seu contexto socio-econômico-cultural-científico. Leonardo Da Vinci se dizia primeiro cientista e depois artista. Fritjof Capra diz em seus livros que para Leonardo a arte é indissociável da ciência, do conhecimento e da compreensão intelectual da natureza das formas.
Não foi somente Leonardo a ligar as duas culturas, as duas formas de pensar em tempos mais antigos. Como exemplo temos Dürer em suas ilustrações para um atlas de medicina e Galileu (1564-1642) que, usando seus conhecimentos de perspectiva e geometria, seu domínio do desenho e da técnica renascentista do “chiaroscuro” (claro-escuro) que permitia a passagem da luz nos objetos, ressaltando assim seus volumes, deu condições ao cientista de Pisa desenhar uma Lua com seus relevos, inclusive determinando a altura de algumas montanhas lunares.
Com a grande divisão das disciplinas, e após a revolução científica moderna, com o surgimento do método científico que, baseado na lógica, na Matemática e nos princípios da razão, se exclui tudo o que é sensível, subjetivo e emotivo. Desta forma, a Arte, subjetiva, se afasta da Ciência, objetiva.
Assim, como vemos, a Ciência sempre esteve associada à Arte. Hoje em dia tomamos por base alguns teóricos nas diversas áreas que vêm em auxílio da fundamentação necessária ao campo ainda em construção, como por exemplo, Charles Percy Snow, Robert e Michèle Root-Bernstein, Gilles Deleuze, entre outros. Alguns pesquisadores têm assumido posição de protagonismo nas pesquisas, tais como Todd Siler, que se tornou o primeiro artista visual a conseguir o PhD no Massachusets Institute of Technology, na área de Estudos Interdisciplinares em Psicologia e Arte em 1986.
Siler é um artista americano multimídia, autor, educador e inventor, conhecido por sua arte e por seu trabalho em pesquisa em criatividade. Siler defende a integração das artes e das ciências e, juntamente com Root-Bernstein, é um dos criadores do Movimento ArtScience. Siler e Root-Bernstein, com mais dois pesquisadores, escreveram o Manifesto ArtScience – termo cunhado pelo próprio Siler -, em que elaboram um arrazoado de pontos que servem para balizar uma potencial definição do que seja Ciência e Arte. O Manifesto pode ser encontrado na Revista Leonardo: LEONARDO, Vol. 44, No. 3, p, 192, 2011. Eles afirmam que “A visão de ArtScience é a re-humanização de todo o conhecimento e a missão da ArtScience é a reintegração de todo o conhecimento”. O grande desafio, eu percebo, é como fazer isso? Será possível, em tempos tão difíceis que isso aconteça?
Particularmente, muitas vezes me assusta muito a ideia de ter uma única definição para o que pode ser Ciência e Arte. Isso dependerá de muitos contextos, de muitos pontos de vista, de muitas aplicabilidades diferentes e principalmente do seu próprio universo e realidade. O pesquisador deve ser capaz de, à partir de leituras e experiencias, de seu entendimento, criar sua própria definição e analisar se ela encontra eco… Meio freiriano, né? Mas acho que tem que ser assim mesmo.
– Compartilhe conosco um pouco da sua trajetória acadêmica, até iniciar o trabalho com Ciência e Arte, no Instituto Oswaldo Cruz…
– Minha trajetória é longa na Fiocruz. Eu comecei ainda como estagiária de Museologia. Eu sou museóloga de formação e a minha alma mater é a UNIRIO, quando, em 1983, me formei. Fui continuando ali no Museu Institucional. Em 2010 me transferi para o Laboratório de Inovações em Terapias, Ensino e Bioprodutos do Instituto Oswaldo Cruz – LITEB/IOC/Fiocruz, onde está a Linha de Pesquisa em Ciência e Arte. Assim, estive todo tempo com a Ciência e a Arte, e pude descobrir como são igualmente belas! Todo o experimentar, artístico ou científico, tem tentativas, acertos, erros e tudo tem ou deve ter significado, proporcionando uma aventura no caminho de sua compreensão!
Ciência e Arte. Para mim, não há nada mais bonito e que resume de forma tão completa e tão infinita a alma do ser humano – se é que o infinito pode ser completo. O ser humano se completa quando produz: um livro, uma obra de arte, uma máquina, uma experiência. Tudo é fruto de sua criatividade, do seu saber, do seu meio, do seu perplexo diante da existência.
É essa emoção que vivo todos os dias, quando cruzo com qualquer pesquisador nos corredores do laboratório onde trabalho, vivendo a incrível história de uma museóloga que veio parar num laboratório. Foi lendo, pesquisando, ajudando, tentando entender o máximo possível a ligação entre a Ciência e a Arte, que se construiu este trabalho. Foi da experiência como museóloga e das atividades nesta área que eu pude me inserir na pesquisa em Ciência e Arte.
Mapear e coletar o acervo da Fundação Oswaldo Cruz foi um trabalho interessante e enriquecedor. Precisei, em vários momentos e com várias equipes diferentes, fazer quase uma atividade de garimpo, de arqueólogo, mergulhando em pilhas de objetos inservíveis e disponibilizados para leilões, retirando dali verdadeiros tesouros perdidos, ocultos e dando voz a eles. Cada objeto me contou um pouco sobre como havia chegado ali e que papel havia desempenhado na construção de uma história. Pessoalmente, tive a honra e o prazer de recuperar muitos deles e trazer à luz, em exposições, peças tão importantes. O acervo da Fiocruz é único, peculiar e rico.
Durante dois anos tive a experiência de cursar uma Pós-Graduação Lato Sensu fora do Brasil. Fui aluna da Universidade Municipal de Kyoto, no Japão no curso de Especialização em Ciências das Artes. O contato com uma estrutura universitária diferente da nossa, com um orientador especialista em Arte Chinesa foi fantástico! Aprendi a observar, a tirar da observação os mínimos detalhes de um processo de trabalho. O cuidado com os costumes, com os gestos, com o respeito ao próximo, que tanto caracteriza a cultura japonesa, foi uma lição inestimável.
Essa trajetória profissional foi determinante na pesquisa que vim a desenvolver para a dissertação: observar, coletar, analisar, classificar e interpretar foi o carro chefe deste trabalho.
– E que pontos você destaca da sua dissertação de mestrado sobre as relações entre Ciência e Arte e criatividade?
– Desde 2006, fui pega num tsunami de saber, quando me envolvi com a Pós-Graduação em Ensino de Biociências e Saúde. Primeiro como estudante, depois como auxiliar de docente naquilo que me parecia mágico: uma disciplina, dentro de uma casa de ciência, que abordava Ciência e Arte! Justamente eu, que conhecia sobre a história da instituição, que sabia o que o cientista queria quando desenhou um castelo, em traços tão simples, acabara de achar uma conexão essencial: Ciência e Arte.
A partir de 2010, começamos a reunir todo o material que era passível de uma análise que nos levasse a montar um quadro, um perfil da produção dos alunos que haviam sido desafiados a entender os dois saberes. Obviamente, não somos pioneiros no assunto e muitos filósofos e pesquisadores já estão nesta linha de pesquisa com obras relevantes e essenciais.
Não vou aqui buscar a explicação científica para fatos: quis ajudar a entender o que é necessário saber sobre a coerência do pensamento e das informações, formando as conexões com as quais estou lidando. Minha curiosidade me levará a seguir adiante, continuando com as pesquisas nesta área.
– Na sua avaliação, de que forma cursos de Ciência e Arte gratuitos, como o ocorrido no Museu de Arte do Rio – MAR, em 2015, podem contribuir com a práxis de educadoras e educadores?
– Ao ampliar seu conhecimento diante de cada proposta do curso, o aluno que foi submetido a este processo de conjugação Arte-Ciência encontra um cenário novo e percebe que pode se conectar a novos aspectos, de forma inusitada. Segundo Ostrower (2007), “não há como a inspiração possa ocorrer desvinculada de uma elaboração já em curso, de um engajamento constante e total, embora talvez não consciente”. Conseguimos notar que ao longo de processo, eles conseguem empreender mudanças, se apropriar de conteúdos e avaliar a própria metodologia de ensino.
Estamos num processo de desenvolvimento peculiar, e encontramos experiências muito semelhantes às nossas. Em geral, as experiências e atividades em Ciência e Arte que encontramos nos mostram abordagens variadas: são disciplinas avulsas, cursos de férias, institutos de pesquisa, programas de artscience ligados a laboratórios e a centros de Arte. Enfim, todos objetivam o diálogo entre os dois saberes e o aprofundamento das pesquisas na área. Cabe ressaltar que pesquisas sobre criatividade acontecem desde o final da Segunda Guerra Mundial e que centros nos Estados Unidos, tais como o centro internacional de estudos sobre criatividade, no Buffalo State College, em Nova Iorque, possui curso de graduação e mestrado nesta área específica desde 1967, sendo o mais antigo nos Estados Unidos. Este centro de pesquisa, especificamente, observa que o maior objetivo é facilitar o reconhecimento de que o pensamento criativo é habilidade essencial para a vida.
A disciplina contribui para a criação de um quadro que permite o aprofundamento teórico e possibilita o diálogo entre os saberes respeitando a especificidade de cada campo. Dialogar implica em ouvir e respeitar o outro, aprender com ele como diria Paulo Freire. A proposta de conciliar Arte e Ciência vai ao encontro da necessidade de buscar novos rumos na Educação e na formação profissional, a partir da criação de instrumentos teóricos e estratégias pedagógicas que facilitem e potencializem o aprendizado de ciências. A aproximação com o campo da Arte parece ser uma boa alternativa, pois ela amplia a criatividade e a percepção e enriquece o ensino das ciências.
– O Instituto Oswaldo Cruz – IOC tem previsão de novos cursos? Diante do contexto de pandemia, há algo sendo produzido para educação à distância?
– Estudamos agora a construção da disciplina Ciência e Arte, no formato educação à distância, para que todos tenham acesso ao que propomos. A disciplina presencial é ofertada todos os anos de forma gratuita às Pós-Graduações do Instituto Oswaldo e a cada dois anos, à Pós-Graduação Lato Sensu Ciência, Arte e Cultura na Saúde.
– Como as pessoas podem acompanhar as atividades promovidas pelo IOC?
– Está tudo no site da Fiocruz e do IOC. Temos um grupo do Facebook que reúne os mais diversos perfis de pesquisadores neste campo que se chama CienciArte. Todas as pessoas podem acessar e participar.
– Pela sua experiência, como Ciência e Arte podem nos auxiliar na construção de uma sociedade mais justa? Além da Educação, em que outras áreas Ciência e Arte tem contribuído?
– Lembra que eu falei para você na primeira pergunta sobre o Jacob Bronowski? Pois é. Ele disse uma coisa muito legal: não existe sociedade que tenha Ciência e não tenha Arte e uma sociedade que tenha Arte e não tenha Ciência. Muitas vezes, as sociedades em situações mais frágeis ainda recorrem à Arte para a educação de suas crianças e isso faz com que, de certa forma, as percepções cognitivas fiquem mais afloradas para a observação das coisas da natureza. Como se forma o verdadeiro espírito científico, senão através da curiosidade e da sensibilidade? É nesta ligação que a Ciência e a Arte podem colaborar com a sobrevivência do espírito humano em tempos tão difíceis.
Artigos da Professora Anunciata Sawada em coautoria
Cienciarte ou Ciência e Arte? refletindo sobre uma conexão essencial
Ciência, Arte e Cultura na Saúde