Por Verbena Córdula*

 

No Brasil, as mulheres negras são as principais vítimas da violência doméstica (58,86%), são também as mais afetadas pela mortalidade  materna (53,6) e pela violência obstétrica (65,9%), além de terem duas vezes mais probabilidade de morrerem assassinadas que as mulheres brancas. Embora de modo superficial, a denúncia dessas violências tem encontrado espaços, inclusive em muitos meios de comunicação hegemônicos. No entanto, quando o assunto é o silenciamento dessas mulheres, o mesmo não acontece.

A estudante de Comunicação Social Ana Catharina Oliveira, 24, lembra que em 2019 o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou pesquisa revelando que estudantes pretos e pardos são maioria nas universidades públicas do país, “mas não  mostrou os números referentes às desistências ligados aos processos de violência epistêmica que afetam com frequência esses grupos”. Ana Catharina diz que é muito notável para os grupos marginalzados o quanto o espaço acadêmico é pautado em uma visão eurocêntrica, na qual não há espaço para pontos de vista e conhecimentos dos grupos marginalizados, entre eles as mulheres negras.

A jovem universitária viveu várias situações de silenciamento, as quais, conforme salienta, “foram muito violentas”. Ela diz que, na universidade, precisa se esforçar muito mais que os colegas brancos para provar que tem conhecimentos e domínio sobre determinados assuntos. Assinala que “em situações nas quais argumenta e não aceita determinadas colocações, lhe é atribuída “a imagem de uma mulher preta raivosa”.

Ana Catharina Oliveira. Foto de Graci Sá

Museóloga e pesquisadora, Joana Flores, 53, também vivenciou situações nas quais suas capacidades foram desconsideradas. “Na graduação em Museologia, todo mundo dizia que eu era muito burra. Eu queria falar que aquilo era violento, mas no início eu não conseguia”. Conforme Joana, diferentemente do que acontecia em relação a colegas de turma brancas e brancos, nunca recebeu qualquer incentivo para trilhar o caminho da pesquisa. “Nenhum professor, nenhuma professora nunca falou comigo sobre iniciação científica. Nunca acreditaram que eu poderia ser pesquisadora”.

A primeira experiência de Joana na Museologia deu-se a partir de um estágio no Museu de Arte da Bahia. Aquela vivência, de acordo com ela, já revelava o quanto os seus conhecimentos eram subestimados. “Os funcionários do local me diziam para atender as escolas públicas, as quais recebiam da instituição um tratamento inferiorizado em relação às escolas privadas. Eu comecei a perceber. E eu nem estava com o diploma”.

Já graduada, Joana passou por uma experiência no inventário do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), no estado do Maranhão, onde também foi subestimada. “Percebi que eu só tinha lugar como técnica. Mas eu enfrentei. Eu disse para mim mesma que iria permanecer na área da museologia, e comecei a estudar mais”.

Além de Museóloga da Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB), onde atua  como gestora do Núcleo da Pró-Reitoria de Políticas Afirmativas e Assuntos Estudantis no Centro de Artes e Humanidades e Letras, Joana Flores é doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Crítica Cultural da Universidade do Estado da Bahia (UNEB) e autora do livro “Mulheres Negras e Museus de Salvador: diálogo em branco e preto” (2017), fruto de sua dissertação de Mestrado defendida no ano de 2015, na Universidade Federal da Bahia (UFBA).

O livro discute a representação das mulheres negras nos museus de natureza histórica situados em Salvador e problematiza a participação dessas instituições como espaços de representação e poder; além disso, analisa até que ponto aquelas narrativas demarcam e legitimam a imagem estigmatizada da mulher negra na sociedade contemporânea. A obra da Museóloga e pesquisadora tem circulado para além do Brasil, em países da América Latina e Europa, a exemplo de Argentina, Colômbia e Portugal. E tem servido de referência para muitas jovens estudantes negras brasileiras que pesquisam representação.

Joana Flores. Foto de Laurellie Pacussi

Calila das Mercês, 31, doutoranda do Programa de Pós-graduação da Universidade de Brasília (UnB) afirma que, “embora a lógica da dominação compreenda pessoas negras como o lixo da sociedade, não iremos deixar de falar à nossa maneira. Não necessitamos que falem por nós”. Citando a frase “o lixo vai falar, e numa boa”, de autoria da professora e antropóloga Lélia Gonzalez, ícone da luta contra o racismo e uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado e do Coletivo Mulheres Negras N’Zinga, a jovem pesquisadora afirma que é impossível falarmos em literatura brasileira sem apontarmos para a cor da literatura que estamos tratando. E ressalta que o mesmo se aplica à sociedade.

Calila das Mercês lembra que Beatriz Nascimento e Lélia Gonzalez, há 40 anos,  já alertavam sobre as ausências da mulher negra em espaços de legitimidade, devido à lógica do racismo. Conforme ressalta, “Nós, que ainda disputamos a comida na mesa, também estamos durante todos estes anos lutando para que nossas palavras e vivências não sejam editadas para caber em espaços que são convenientes”. Como pesquisadora que estuda os movimentos, os deslocamentos, as representações e o [re]mapeamento de mulheres negras na literatura contemporânea, afirma ainda que, na tradição literária brasileira, Calila afirma que é muito comum a objetificação das mulheres negras.

Ela ressalta que, além de Lélia Gonzalez e de Beatriz Nascimento, ao pensar a literatura, a escritora Conceição Evaristo traz observações que se aplicam a outros campos sociais, onde escritores brancos se tornaram referências brasileiras com narrativas que contribuíram para estigmatização e estereótipos de servidão, sexualização e objetificação de mulheres negras. “E isso se desdobra em muitos fatores, incluindo como somos tratadas socialmente”, observa.

A pesquisadora coordena o projeto Escritoras Negras da Bahia (Edital Literatura – SECULT-BA/2016). Em 2015 recebeu o Prêmio Pesquisa Literária da Fundação Biblioteca Nacional, pelo projeto de dissertação; e o Prêmio Antonieta de Barros – Jovens Comunicadores Negros e Negras, pelo projeto Escritoras Negras. “Ao pensar num/a escritor/a baiano/baiana, desejo que dentre as referências tenhamos sempre mulheres negras, não como cotas, ou somente em eventos específicos como em Dia da Consciência Negra, mas permanentemente”.

Calila das Mercês. Foto de Ana Lee Sales

Ana Catharina, Joana Flores e Calila, três mulheres negras de gerações diferentes, são apenas alguns exemplos dessa luta cotidiana travada pelo direito de existir, de ser valorizada, de ser ouvida, de fazer parte dos espaços de construção do conhecimento.

“É necessário mudar as narrativas ensinadas nas escolas e nas universidades, que trazem somente concepções eurocêntricas”, ressalta Ana Catharina. “É preciso que o imaginário da comunidade negra seja representado com a devida pluralidade de expressões e linguagens, as quais nos revista de potencialidades, vivências, sentimentos e conhecimentos”, reivindica Calila das Mercês. “As formas de conhecimento que expõem certas realidades precisam ganhar espaço. E a gente precisa e vai sustentar esse lugar”,  garante Joana Flores.


*Graduada em História, doutora em História e Comunicação no Mundo Contemporâneo. Professora Titular da Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC), Ilhéus BA. Pesquisa Gênero e raça.