CRÔNICA
Por Vera Lucia S. S. Gregorio
Todos que os conheciam concordavam num ponto: eram o casal perfeito .
Ela também pensava assim.
Afinal sempre fora muito decidida e certa do que queria. Planejou sua vida desde que teve consciência do futuro que estava destinado a ela, pela lógica natural.
Menina, parda, pobre, filha de agricultores (colonos), analfabetos e com uma prole extensa. Expulsos da zona rural pela falta de políticas públicas para fixar o agricultor na sua roça. Personagem, portanto, do enorme êxodo rural ocorrido na década de 70, ela se reconheceria mais tarde nas ilustrações dos livros de Estudos Sociais que versavam sobre o assunto.
Assim, decidira que não queria a vida das suas irmãs mais velhas, que abandonaram os estudos cedo pra trabalhar, ajudar nas despesas de casa e poder ir a festas, se divertir e ter roupas melhores pra isso. Não que se divertir fosse errado.
Cresceu sozinha de amigos porque naquele tal machismo cultural (hoje sabia disso), menina, adolescente que vivesse cheia de amizades não era “direita”.
Se adequou a essa forma, por medo, por complexo de inferioridade e porque precisava sobreviver.
Estudaria, teria uma profissão digna e se casaria com um rapaz tão responsável e perseverante quanto ela.
Porque ela era dessas.
Casamento era pra vida toda.
Assim delineou seus passos e, assim, começou seu caminho, certa de suas convicções.
Seus pais, irmãos, sogros, cunhados nunca souberam de um desentendimento sequer entre o casal.
Ela não daria essa liberdade a ninguém.
Estudou. Passou num concurso. Casou-se. Passou em outro concurso e estavam construindo a casa dos sonhos do casal.
Perfeito, né?
Então…
Ela desenvolveu uma técnica. Quando ela e o marido não estavam bem, ela tinha um sorriso de “comercial de margarina” sempre pronto para os filhos e para todos que chegassem à sua casa, nesses momentos.
E por dentro tinha um pote imperceptível de amarguras. A cada sorriso de comercial correspondia uma porção de amargura no pote.
Mas, pensava, “todo casamento é assim”.
E ela foi se “adequando”.
Suas roupas? Sempre em tons claros. As de cores vibrantes chamavam a atenção e o deixavam de mau humor. Seu armário era uma pobre paleta de cores que ia do branco gelo( mais discreto) até o bege ( brega), hoje nude. O máximo que se aventurava era um marronzinho e um amarelinho bebê. Vermelho? Preto?
Nem na lingerie!
Quando se arrumava pra ir trabalhar via, pelo reflexo do espelho, o olhar dele. Desse olhar dependia se ele falaria com ela durante os próximos dias ou não.
Ou ainda, se ela “perceberia” uma manchinha invisível na roupa escolhida e preferisse trocar.
Simples assim.
Ela aprendeu, bem rápido, como “ não ficar sem conversar”.
Mas pensava: Todo casamento é assim.
Trabalhava fora, cuidava da casa, dos filhos (ajudava nos deveres de casa).
Ajudava os pais, pobres e humildes. Diria até subservientes.
Desde que passou a ganhar mais que ele, pois estudou mais e ascendeu mais, profissionalmente, um outro acordo mútuo e mudo se estabeleceu. Ele nunca quis saber qual era o salário dela. Tinham uma conta conjunta e, para agilizar ( estavam construindo a casa) ela resolvia as “coisas de banco”.
E ela começou a ter que comprar roupas e calçados pra eles e pras crianças, escondido.
Quando ela se arrumava e arrumava as crianças pra sair, ele olhava como se sempre tivesse visto aquelas roupas em casa. Mas, se ela dissesse que precisava comprar roupas pras crianças e pra eles dois,ahhh… era cara emburrada pra mais de metro. Então, comprava e “ escondia” no armário mesmo.
Mas pensava: Todo casamento é assim.
Sobrancelhas? Não fazia. Ele gostava delas assim.
Cuidar do corpo? Ele achava-a linda de qualquer jeito (principalmente se ela estivesse acima do peso).
Batom? Um “cor-de-boca”, que tem o seu valor, mas todos os dias?
Mas ela achava bonitinho ele pensar assim. Aquilo era “prova” de amor, prova de que se importava com ela.
Quando recebiam algum amigo dele, com um simples olhar ela entendia se precisava ir “lá dentro” trocar de roupa.
Quando recebiam alguma amiga dela, afinal mulher tem somente amigas, ora essa, se ele ficasse na sala, tudo bem. Se ele fosse para o quarto…
Até que a vida veio mostrar a ela que não, ela não tinha o controle da sua própria vida. E ela “ainda” achava que tinha.
Depois de pouco mais de uma década de casamento, por uma fatalidade, ele se foi. Seu mundo caiu.
Tempos depois, não muito, ela se encontra com uma velha amiga que, com muito cuidado lhe pergunta:
– Amiga, o seu marido te maltratava?Ele te batia? Ele te proibia de sorrir?
O pote de amarguras que era invisível dentro dela, mas não era imperceptível pra quem a conhecia de perto, transbordou.
Relacionamento abusivo? Como?
Hoje essa mulher vive.
* Mestra em Cognição e Linguagem, M.B.A em Gestão, Especialista e Mediadora em EaD, Pedagoga.