ENTREVISTA
Não é de hoje que a humanidade se debruça sobre os dados de violência contra as mulheres, e, no entanto, apesar de todos os avanços em termos de legislação para se tentar protegê-las, parece que estamos caminhando para trás. Muitos defendem que esse tipo de violência é cultural e por mais que se tenha políticas públicas punitivas, ainda estamos distantes de uma perspectiva sólida de resolver o problema.
No Brasil, a Lei Maria da Penha, a de feminicídio e a de importunação sexual poderiam cobrir de proteção as vítimas, mas, na maioria das vezes, as mulheres se calam – ou por proteção à família, ou por simplesmente, desconhecer seus direitos, já que o silêncio impera, quase que criminosamente dentro do próprio estado brasileiro, que não oferece uma informação clara a partir dos bancos escolares.
Se passarmos uma lupa sobre os dados da violência contra as mulheres no Brasil, vamos perceber que essa violência segue um padrão determinante – mulheres pobres e pretas estão no topo do ranking dessas estatísticas e se aprofundarmos nosso foco, veremos que as pretas são as maiores vítimas. Parece um padrão social trazido através do tempo desde a escravatura.
A política do azul e rosa do Ministério das Mulheres
Ao assumir o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a ministra terrivelmente cristã, Damares Alves, declarou que no governo Bolsonaro marcaria uma nova era para o Brasil, onde meninos vestiriam azul e as meninas, rosa.
Depois desse emblemático discurso, muito pouco ou quase nada foi feito pelo atual governo, no sentido de se criar políticas públicas de enfrentamento do problema da violência doméstica e contra as mulheres. E de acordo com especialistas que militam no setor, o governo tentou esvaziar os Conselhos e Comissões Nacionais de Políticas Públicas, que teriam como principal missão dialogar com a sociedade em diferentes áreas, sugerindo políticas públicas eficientes para tratar diversos males, inclusive o da violência de gênero.
Relatórios do Conselho Nacional de Direitos Humanos, revelam que o governo está interferindo no processo de escolha dos membros dos Conselhos e Comissões, substituindo as votações em assembleias por processos seletivos, cuja a aprovação dos membros fica a cargo do Ministério, comandado por Damares Alves. Essa determinação está diminuindo o poder de fiscalização dos conselhos sobre as políticas públicas implantadas, já que cria uma crosta protetora – capitaneada por Damares e seus seguidores – e impede que a sociedade como um todo tenha participação nas diretrizes definidas.
Com a pandemia e a quarentena, o Brasil está assistindo silenciosamente os números da violência contra as mulheres crescer assustadoramente, tanto, que a Câmara dos Deputados aprovou um projeto de lei que estabelece medidas excepcionais que garantam o afastamento do agressor durante o período de confinamento. O texto que ainda está sendo discutido no Senado estabelece o aumento de vagas em abrigos e obriga o poder público a garantir o custeio de aluguel de casas, quartos de hotéis ou outro tipo de instalação privada quando não houver vagas disponíveis, para as mulheres vítimas de violência, nos abrigos públicos. O projeto garante ainda às mulheres de baixa renda, que estejam sob medida protetiva, o direito de receber o valor referente a duas cotas do auxilio emergencial.
Centenas de mulheres são agredidas pelos seus companheiros diariamente dentro de suas próprias casas. Com a Pandemia os números aumentaram. Dados da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos do governo federal, mostram que as denúncias de violência doméstica, entre os meses de janeiro e abril, tiveram uma alta de 14,1%, quando comparadas ao mesmo período de 2019. O mês de abril sozinho apresentou um crescimento de 37,6%, com 9.965 denúncias de casos.
Uma história de violência e coragem em trezentas páginas
Nada melhor para conhecer é realidade da violência contra as mulheres, do que ouvir a voz, quando sobrevive, da própria vítima. Existe uma estimativa que uma a cada três mulheres no mundo sofrem algum tipo de violência, em casa, no trabalho ou nas ruas. E o número de crianças, vítimas de uma cultura machista e arcaica, cresce na mesma proporção, dificultando a quebra dos elos dessa corrente que alimenta ao mesmo tempo vítimas e algozes.
A quebra do silêncio é uma das principais armas para romper com esse ciclo vicioso. E foi apostando nisso, que a professora Rosana Reis, uma personagem sobrevivente desse universo, decidiu transformar a sua história de dor, num livro e assim, chamar a atenção de outras mulheres e de homens para o problema.
No livro “Vida e Verdade” Rosana Reis quebra o silêncio e torna pública a sua história. Ela conta como sobreviveu a um casamento marcado por abusos e violência, deixando para trás a culpa e o medo que tanto aterroriza todas as mulheres violentadas. São 300 páginas que relatam uma história de amor e, de sonhos, mas marcada por abusos. Na história, Rosana é representada pela personagem Paula. Foram 4 anos e meio dedicados a colocar no papel trechos de uma vida. A narrativa mostra o exercício de coragem da personagem e de como ela conseguiu forças para encarar as mudanças em busca de novas oportunidades e de uma vida com mais alegria.
Foram 30 anos de uma angustiante espera até Rosana Reis conseguir falar sobre o tema e contar o que lhe aconteceu. E assim, a professora deixou de lado o medo e fez nascer uma escritora que pretende influenciar milhares de mulheres que sofrem caladas e que precisam de voz.
– Por que contar essa história num livro?
– Quando comecei a escrever eu não tinha intenção de fazer um livro, eu apenas queria colocar no papel o que eu havia vivenciado e não falava para as pessoas. Assim como muitas mulheres que convivem com a rotina de violência doméstica, eu não tinha consciência de que minha vida era marcada por abusos. Rascunhei em um caderno e mostrei para algumas amigas, elas me perguntaram se eu estava escrevendo um livro, foi aí que eu percebi que poderia ajudar muitas outras mulheres a não passarem pelo que eu passei.
– E, como se deu todo o processo de criação, tendo que reviver momentos tão duros?
– A partir do momento em que eu decidi que seria um livro, comecei a estudar como iria fazer. Aos poucos fui organizando como seria, o que eu queria falar, quais seriam os personagens e os capítulos. Não foi um processo fácil, no início foi bom me lembrar da infância, dos amigos que marcaram minha vida. Depois, quando eu realmente entrei na história dos abusos, foi dolorido demais. A cada frase escrita era como se eu estivesse passando por tudo aquilo novamente, chorei muito. Em um dos momentos mais fortes eu parei de escrever, só consegui voltar depois de quase dois meses.
– O que as mulheres podem encontrar no livro e que pode servir de alguma ajuda para quem está vivendo situações semelhantes?
– “Vida e Verdade” retrata a história da jovem Paula, que me representa no livro. Uma mulher sonhadora que conhece um homem, se apaixona e se casa imaginando construir uma família e “ser feliz para sempre”. Mas já na lua de mel, ela entende que nem tudo seria fácil, nessa noite vem a primeira decepção; Paula é violentada pelo marido. Ela se percebe em apuros, mas ele pede perdão e faz promessas, o casal então decide seguir em frente. A partir daí muitas situações de violência doméstica são retratadas.
– Por que Paula suporta os abusos por tanto tempo?
– Eram vários tipos de abuso, como, violência física, emocional e ameaças. Ele tinha momentos de príncipe, era uma pessoa encantadora, mas em outros, se mostrava um agressor. Paula então descobre que ele é usuário de cocaína e aí ela começa a associar que durante os momentos de terror, ele provavelmente estaria sob efeito da droga. Ele era obcecado por ela, tinha um ciúme doentio e se mostrava bastante inseguro.
– Você vê alguma mudança nesse padrão de violência ao longo desses 30 anos?
– No processo do livro eu comecei a prestar mais atenção nas pessoas e pude perceber que a violência contra as mulheres existe e está ao lado da gente. Tenho recebido muitas mensagens de mulheres que me contam os abusos que já sofreram ou que ainda sofrem diariamente. Elas relatam que se identificam com vários momentos do livro, muitas delas me ligam chorando para contar. No ano passado eu fiz uma palestra para algumas jovens do ensino médio em uma escola, e quando terminei, muitas delas relataram situações de abusos que presenciavam de seus pais ou padrastos, ou até mesmo de seus namorados, o que foi um susto para mim.
– O que “Vida e Verdade” tem a contribuir ?
– Eu espero que um grande número de pessoas possa ler o livro para saber que isso acontece mais do que a gente imagina, e com pessoas que estão ao nosso lado. Quero debater sobre o tema, pois esse problema relacionado a violência doméstica é de toda a sociedade. Vejo que ainda temos muito o que trabalhar na prevenção contra os diversos tipos abusos.